Cristóvão Tezza, ele mesmo e nenhum outro, foi meu mestre. Meu maior mestre. Ao longo dos últimos vinte anos, tive a sorte de contar com outros tantos mestres, mas ouso dizer que nenhum teve nem vai ter a mesma importância do professor que desde meus dezessete anos tento, em vão, conquistar, naquele conflito que Freud já analisou muito bem. Tezza é o andar térreo deste edifício de engenharia temerosa que atende pelo nome de “eu”.
Levei muito tempo para assumir isso. Para chegar a esta conclusão que, neste momento, me parece a mais óbvia do mundo. Talvez porque, idiota que fui, não percebesse a grandeza de Cristóvão Tezza não apenas como escritor, mas sobretudo como mestre. Pior: talvez eu tivesse vergonha, como um capiau curitibano de bochechas rosadas e todo constrangido ao ouvir falarem de sua terra natal.
Vale dizer desde já que Tezza foi meu mestre involuntário. Até porque duvido que ele aceitasse a tarefa de ser meu mentor – não o culpo. Aliás, ocorre-me agora que ele realmente (e com todo o tato do mundo) se negou a esta empreitada naquele remoto dia da década de 1990 em que, trêmulo – aparentemente houve uma época da minha vida em que eu tremia demais –, entrei em seu Lada (vermelho?) com um envelope cheio de esperanças e alguns textos.
Se você chegou até aqui sem entender o porquê dessa minha homenagem e está pensando que há alguma motivação oculta ou alguma ironia muito cruel nestas minhas palavras, a explicação, na verdade, é muito simples. A mais simples e não-irônica do mundo. Depois de muito pensar, algo que faço por lazer e esporte, cheguei a essa conclusão algo mágica de que minha vida adulta toda sofreu influência deste escritor e professor.
É muito poder para uma só pessoa – alguém há de lembrar, com razão. Mas aqui não cedo à tentação mundana de culpar Cristóvão Tezza pelo que fui e sou. Não! A ideia é celebrar o grande acaso de eu ter lido Trapo com quinze anos e o acaso maior ainda de ter me identificado tanto com o protagonista meu xará a ponto de, inconscientemente, me esforçar para eu também me tornar um maldito – no melhor sentido da palavra, se é que há.
Cristóvão Tezza, com seu Trapo, foi mais decisivo para minha vida do que mais tarde seriam Shakespeare, Dostoievski, Camus e Machado de Assis. Muito mais. Porque o li na época certa, com a mentalidade certa e a… personalidade certa, isto é, em construção. Aquele menino de orelhas de abano e cabelo desgrenhado era, de certa forma, leitor ideal daquele romance. Não o leitor idealizado pelo escritor, veja bem. Mas o leitor ideal ainda assim.
Foi por causa dele que fiz faculdade de jornalismo. E aqui prometo que, mais uma vez, resistirei à tentação de culpá-lo por uma carreira bastante atribulada. Mas foi por causa dele, sim. Aos dezessete anos, tinha certeza de que passaria o restante dos meus dias escrevendo como o protagonista de Trapo, assim aos borbotões, atabalhoadamente, me achando o melhor, o injustiçado, o sensibilíssimo e sobretudo o fadado.
Lembro-me bem do espanto que foi descobrir, depois de um exaustivo vestibular, que ninguém menos do que Cristóvão Tezza seria meu professor. Você não vai acreditar e eu não tenho ninguém para confirmar, mas vou dizer assim mesmo: chorei um choro bem adolescente, trêmulo (!) como deve ser, talvez até convulsivo, ao descobrir que o autor de Trapo, o homem que parecia me conhecer completamente, sem jamais ter visto minha fuça espinhenta, seria meu professor, meu mestre.
Aí eu fiz aquilo. Imprimi meia-dúzia de bobagens que tinha escrito na certeza de serem obras-primas irrefutáveis e, muito cedo, fiquei de prontidão em frente ao prédio de Tezza, na esperança de obter a aprovação absoluta dele. Em meu delírio juvenil, eu o imaginava exultante, gritando algo como meu Deus que gênio que pedra bruta que eu vou lapidar eu achei meu Trapo meu Paulo meu pupilo. Ou coisa assim.
Em vez disso, Tezza me chamou para entrar em seu carro (um Lada que acho que era vermelho). Foi extremamente simpático. Pegou meu envelope. E leu. E, mestre que foi e sempre será, me criticou com a ênfase que o menino merecia. Se me arrependo de algo, meu caro, é de ter demorado tanto para internalizar aquelas palavras sábias que você falou para o ainda adolescente trêmulo (sempre trêmulo!), esperançoso, sim, de ser admirado, mas também com um temor reverencial daqueles pelos quais eu queria ser aceito.
“Não seja tão dogmático”, disse ele. Mas eu fui. Pior, fui dogmatíssimo. Do tipo que acha que o ponto-final sempre encerra uma verdade irrefutável. Eu era o próprio Deus ditando meus axiomas para os incautos.
Mas a vida espanca, chuta, cospe, humilha de todas as formas possíveis até que, mais cedo ou mais tarde, você aprende. Ao menos essa é a tendência. E eu aprendi. No decorrer desses anos todos (que na verdade nem são tantos assim), a cada tropeço, a cada dia que passei ensimesmado, pensado na violência dos meus dogmas, a cada dia que deixei de abrir as cortinas porque o sol me ofendia, ouvi sempre um sussurro muito baixinho, assim um fiapo de voz mesmo, a me lembrar de quem eu era em essência: não – nunca! – o Trapo suicida, e sim o Trapo apaixonado pela vida, empolgado com todas as imagens que a sua cabeça é capaz de engendrar, com amor (ah, palavra cafona!) vazando pelos poros, sempre acreditando que há metafísica até mesmo no mais gorduroso bolinho de bacalhau, rindo daquela coisa toda de injustiça, hipersensibilidade e fado.
O sussurro eram palavras de Cristóvão Tezza. Meu inegável mestre a quem deixo aqui essa homenagem, na esperança de que ela não seja lida como insulto*.
*Nunca se sabe.
- Texto originalmente publicado no blog do autor.
Paulo Polzonoff Jr.
Jornalista, crítico literário, tradutor e escritor, autor de "Manuel Bandeira" (2006) e "O Homem que Matou Luiz Inácio" (e-book, 2016).