*Para o Especial Machado de Assis
“Ao vencedor, as batatas!”. Machado de Assis sentencia pela boca de Quincas Borba, nas primeiras páginas do livro que leva o nome da infeliz personagem, a frase que melhor o resume. Rubião, ingênuo e ambicioso, não entende as palavras de Quincas quando este, já muito doente, tenta lhe ensinar o seu Humanitismo, uma filosofia inteligentemente montada por Machado para escarnar da sociedade científica da época. Mistura das doutrinas deterministas de Darwin com os pensamentos de Aristóteles e sua ‘polis’ grega, temperada por preconceitos e obtusidades da metade do século XIX, a filosofia professada por Quincas Borba permeia ironicamente os eventos que se sucedem na vida de Rubião, após o falecimento de seu amigo.
Subitamente feito capitalista pela rica herança de Quincas, Rubião se vê como grande vencedor após 40 anos de uma vida fracassada, mas não imagina a batata quente que tem nas mãos (me desculpem por isso). Atraído pela opulência do Rio de Janeiro imperial, o novo rico conhecerá Palha e Sofia, casal a quem se afeiçoará com rapidez comovedora, principalmente a Sofia. Além deles, conhecerá uma burguesia que competia pelos ares nobres da decadente Corte carioca. A soberba intensifica o desejo de Rubião por Sofia – e este desejo acabará levando-o à loucura e à ruína, arquitetada pelo casal.
Acompanhado pela cumplicidade e compaixão que o narrador tem por Rubião, o leitor termina o livro sentindo pena do protagonista. O desfecho soturno contribui para isso, os ares de tragédia quase justificam. O julgamento moral deve ser, porém, vigiado. Machado faz em “Quincas Borba” algo comum à sua vasta obra ficcional, incluindo aí os famosos contos e romances como “Dom Casmurro”, “Memorial de Aires”, “O Alienista” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – do qual “Quincas Borba” pode ser considerada, de certa maneira, uma continuação brilhante. Como nas obras citadas, a história de Rubião dialoga, desafia, engana, ludibria o leitor. É o estilo machadiano, seu realismo de prosa clássica, mesmo pomposa, dada a contar as maiores barbaridades com a frieza de um escrivão de delegacia, que nos traga o espírito ao ler o pérfido destino de Rubião.
A frase emblemática de Quincas Borba percorre todo o livro, adquire novos sentidos a cada evento, a cada pequeno capítulo que Machado insere marotamente tratando das vidas e pensamentos das demais personagens. A vastidão de tipos que participa do enredo colore a história com as tintas de um romance clássico – do qual o autor foi exímio leitor e estudioso e soube adaptar às suas prerrogativas de estilo. Vemos Rubião em meio a uma sociedade decadente. As batatas mencionadas por Quincas perdem seu sentido mais direto, que emerge da comparação com as teorias de Darwin ou Spencer: físico, vital, comida, sobrevivência animal. A adaptação que Machado faz da ciência evolucionista à sociedade moderna coloca as aparências, intrigas e mesquinharias como substitutos naturais à guerra protagonizada pelas tribos em busca das batatas, na metáfora de Quincas Borba. Nesse ponto, não existe o poder do mais forte, e sim o poder do mais esperto. A briga não é mais por batatas, e sim pela condição de dono das batatas. Pela admiração e pela inveja que isso traz ao vencedor.
Pela cabeça de Rubião, Machado de Assis tratou de fazer passar os sentimentos mais nobres e, também, os desejos mais mesquinhos, e isso torna o personagem humano, de forma fascinante. Nos traz identificação – e medo. Não sabemos, aliás, se temos mais medo do que Rubião guarda de pobre burro ou do que ele guarda de diabólico.
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Machado afiado - Lucas Colombo - 21/07/2008