Nós, do Mínimo Múltiplo, estamos preparando um especial, a ser publicado na próxima semana, sobre o grande Machado de Assis, em função do centenário de sua morte. No embalo, estou lendo e relendo algumas coisas de e sobre o escritor. Esses dias, peguei “O Alienista” novamente, e que maravilha. Como todo grande artista, Machado é sempre atual. Poderia comentar vários aspectos do conto (ou novela, como classificam alguns), mas isso a Vássia vai fazer. Detenho-me num só: as manobras políticas feitas pela câmara de vereadores de Itaguaí, cidade do interior do RJ onde Machado ambientou a história. É tudo tão perfeita e infelizmente identificável nos dias de hoje... Vejam: não sabendo o que fazer para sustentar a Casa Verde, o sanatório ao qual Simão Bacamarte, o personagem-título, recolhe aqueles que considera loucos, os vereadores resolvem, claro, criar mais um imposto para a população pagar – imposto sobre a colocação de penachos em cavalos de cortejos fúnebres. Olhem que ótimo este trecho, em que eles discutem a implantação do novo tributo:
“(Simão) foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última benção na sepultura”.
É tragicômico perceber que esta situação criada por Machado poderia representar o “trabalho” dos políticos brasileiros ainda hoje, mais de 120 anos depois da publicação de “O Alienista”. Nossos políticos continuam ligados a velhas práticas, como essa que o escritor carioca, observador arguto de seu tempo, descreveu no conto. Dá-se um jeitinho para tudo. Age-se de acordo com as conveniências. Priorizam-se os projetos que renderão mais votos, não necessariamente mais benefícios em longo prazo ao país. Como em “O Alienista”, nossos parlamentares nos empurram impostos estapafúrdios para financiar tudo que é coisa. Nós pagamos um absurdo chamado CPMF durante anos, para, supostamente, financiar a saúde, e, depois da alegria de a termos visto acabar, no final do ano passado, agora querem que a paguemos de novo. Sim, porque a tal da CSS, já aprovada na Câmara, não passa de uma CPMF disfarçada. E desnecessária, pois, mesmo com o fim do “imposto do cheque”, a carga tributária no Brasil só faz subir. Em razão disso, os especialistas não cansam de afirmar que não há necessidade de se criar mais um tributo (ou ‘contribuição’, que seja). Mas o governo quer que paguemos essa conta. Um imposto mais para entulhar a nossa vida.
Assim como o povo da Itaguaí machadiana, o brasileiro se afunda em impostos. Nunca é demais lembrar que a carga tributária no Brasil, em 2007, alcançou incríveis 36,08% do PIB, 1,02 ponto percentual a mais do que 2006. Foram arrecadados R$ 1,053 trilhão (uau!) em tributos, no ano passado. Isso mesmo, R$ 1,053 trilhão. Agora eu pergunto: o que tem sido oferecido de volta? A qualidade e a eficiência dos serviços públicos brasileiros aumentaram na mesma proporção que a carga tributária? É claro que a resposta é não. “Ah, mas a carga tributária em países desenvolvidos, como a Suécia, também é alta”, dizem alguns (muitos). Mas, pelamordedeus, comparem a qualidade dos serviços públicos de lá com a qualidade de cá! Lá os serviços são tão bons que a população até pede para aumentar o imposto. Não se importam em pagar mais porque sabem que a contrapartida do governo será ótima. E o que fazemos aqui? Pagamos quilos de impostos para sustentar um estado inchado, assistencialista e pouco eficiente. Estado esse que, em vez de criar condições facilitadoras ao empreendedorismo, nos brinda com uma burocracia irritante que atravanca tudo. É algo que se verifica desde o período colonial: a burocracia que Portugal fez germinar aqui tinha o objetivo de tornar a sociedade brasileira dependente da Coroa, sem iniciativa, sem criatividade. Hoje ainda é assim. Quem deseja abrir uma empresa no Brasil esbarra em inúmeros papéis e impostos. Aqui, a sociedade serve ao estado, em vez de o estado servir à sociedade, como é nos países desenvolvidos.
Parece que a idéia de uma sociedade empreendedora não atrai os políticos brasileiros. Se atraísse, não pagaríamos tanto imposto e não enfrentaríamos tanta burocracia. O que é forte por aqui é a cultura do emprego público. Todo brasileiro médio já cogitou ser funcionário público – ou não? Com a estabilidade e os salários oferecidos... Deve ter sido nisso que os senadores pensaram, na semana passada, quando resolveram criar 97 novos cargos de comissão. Pensaram: “muita gente que quer trabalhar para o governo ganha emprego, e nós ganhamos cabos eleitorais para as eleições municipais deste ano”. Tudo ótimo – para eles, é claro. O custo da contratação dos novos assessores seria de R$ 12 milhões por ano. Mais aumento nos gastos públicos, bancado por nós. A medida repercutiu mal (felizmente), e a Mesa Diretora do Senado, que havia aprovado a proposta, viu-se obrigada a voltar atrás e arquivá-la. O trem da alegria, porém, já tinha atropelado novamente a credibilidade da Casa, depois dos Renans e Rorizes da vida. E revigorou a dúvida se os políticos brasileiros trabalham para o povo, que teria de arcar com mais essa despesa, ou para si próprios. Se eu der a resposta, será que eles me processam?
O presidente Lula, mesmo, já afirmou que é impossível governar o Brasil sem aumentar gastos – e é isso que ele tem feito desde o início de seu governo, e foi isso que os governos anteriores a ele também fizeram. O que, no entanto, o pessoal lá de Brasília não demonstra saber é que o crescimento econômico, tão incensado pelo presidente e por sua equipe, não será mantido se a carga tributária e os gastos públicos continuarem em linha ascendente. O Brasil não crescerá no mesmo ritmo que outros países emergentes se não fizer a sempre prometida – e também sempre adiada – reforma dos impostos e diminuir as despesas públicas. Mas tentar encontrar sensatez nos políticos de Itaguaí – ops, do Brasil – é tarefa árdua. A proposta de criação dos 97 novos cargos comissionados no Senado só indicou o quanto nossos “representantes” estão preocupados com o poder, e não com a sociedade (“ops” de novo, respondi a dúvida do parágrafo anterior...). É assim que tem sido desde 1500. E é assim que essepaís nunca sairá do lugar.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).