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    Machado afiado


    *Para o Especial Machado de Assis

     
    O ano de 2008 marca o centenário da morte de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro do século 19 (e do 20 é Guimarães Rosa, como disse Daniel Piza) e um dos maiores de todos os tempos em nossa literatura. Até setembro, mês exato da efeméride, devem chover textos sobre o autor de “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba” nos jornais e revistas. Todos bem-vindos. Efemérides são importantes para que sejam feitas, novamente, reflexões sobre o fato em questão.

    Machado de Assis, porém, é assunto para toda hora, e não apenas para o momento em que sua morte completa cem anos. Afinal, a obra dos grandes artistas é atemporal e sempre admirada/discutida. Qual o motivo para Goya, Henri Matisse, Pablo Picasso serem sempre apreciados? Por que Charles Chaplin, Billy Wilder, Ingmar Bergman são continuamente vistos? E por que nunca se pára de ouvir Mozart, Cole Porter, Tom Jobim? Porque esses artistas criaram obras de alto valor estético, trabalhos com tantas camadas que, neles, freqüentemente se descobre algo novo, se é tocado de alguma forma. O que é bom, será bom em qualquer tempo. Um artigo sobre Machado de Assis, portanto, sempre terá leitores (pelo menos, deveria).


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    Uma das características mais interessantes da obra machadiana, entre tantas, é o uso da ironia. Análises e mais análises já foram feitas sobre esse tema, mas as discussões não se esgotam. Machado empregava o recurso de modo tão marcante que impressiona até mesmo o leitor contemporâneo, acostumado às ironias de, por exemplo, figuras da imprensa, como Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi e Millôr Fernandes, e do cinema, como Woody Allen – o diretor nova-iorquino, a propósito, já afirmou ser fã de Machado. Nossa época, conforme observou o filósofo Gilles Lipovetsky no livro “A era do vazio”, está impregnada de ironia, e, mesmo nessas ‘condições’, a mordacidade do escritor carioca causa inquietação.

    Sobre um dos romances mais fortemente irônicos de Machado, inclusive, há um dado curioso. Nem todos sabem que “Quincas Borba” foi lançado inicialmente em folhetim. A história de Rubião, um professor primário que herda toda a fortuna do filósofo louco Quincas Borba, de quem era amigo, foi publicada em capítulos no suplemento literário da revista de moda feminina A Estação, do Rio de Janeiro, entre junho de 1886 e setembro de 1891 (o período foi longo porque houve muitas interrupções na publicação). Para o lançamento da história em livro, no mesmo ano em que o folhetim encerrara, 1891, Machado alterou a ordem dos capítulos iniciais, incluiu novos trechos ao longo do romance, suprimiu algumas passagens mais melodramáticas (características da literatura folhetinesca) e redimensionou a ironia presente na obra.

    As duas versões de “Quincas Borba” foram pesquisadas por Ana Cláudia Suriani da Silva, brasileira que dá aulas de Língua Portuguesa na Universidade de Oxford, Inglaterra. Sua hipótese é a de que Machado teria mudado esses aspectos do romance para afastá-lo do gênero folhetim. A edição em livro de “Quincas Borba” daria uma outra dimensão à obra, implicando algumas mudanças de caráter estético. Além disso, na segunda versão, o autor deu tratamento distinto à própria Filosofia do Humanitismo, proposta pelo personagem Quincas. “A ironia muda na passagem do folhetim para o livro. Machado também desenvolve muito mais o Humanitismo, na segunda versão. Nesta, fica mais explícita a própria ironia do destino de Rubião, que se muda para o Rio de Janeiro para ‘colher as batatas na capital’ – trecho acrescentado na segunda versão – e acaba, no final, sendo derrotado. Na versão definitiva, a trajetória de Rubião serve, assim, como exemplificação do Humanitismo”, comenta Ana Cláudia, autora de “Linha reta e linha curva: edição crítica e genética de um conto de Machado de Assis” (Editora Unicamp, 2003). A ironia do romance, conforme a pesquisadora, também se constrói a partir da orientação política da revista em que foi originalmente publicado: “A Estação era uma revista pró-monarquia. Machado escreveu exatamente uma história em que o personagem principal desenvolve uma megalomania imperial. Rubião acredita ser, no final, imperador não do Brasil, mas da França”, completa Ana Cláudia.

    A própria Teoria do Humanitismo, pode-se dizer, possui um componente irônico. Para explicá-la, Quincas descreve a seguinte situação: há duas tribos famintas, em um campo de batatas. Os tubérculos podem alimentar somente uma das tribos, que, assim, ganhará forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância. No entanto, se as duas tribos dividirem em paz as batatas, não irão nutrir-se suficientemente e morrerão de inanição. Nesse caso, a paz é a destruição, e a guerra, a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Quincas conclui a explicação com a célebre frase: “Ao vencido, o ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Com essa idéia, Machado sugere que a vida é um campo de batalhas, em que apenas os mais fortes e espertos sobrevivem.

    Outras obras do escritor carioca também apresentam forte ironia. É famosa, nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por exemplo, a fala do personagem-narrador sobre seu relacionamento com a personagem Marcela: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Aqui, a ironia decorre do fato de se medir o amor segundo critérios cronológicos e financeiros.

    Nos seus extraordinários contos, Machado também utiliza bastante o recurso. No final de “Um Homem Célebre”, o personagem Pestana – músico que desejava criar sinfonias, mas só conseguia compor polcas –, já muito doente, recebe a visita do editor de suas partituras. Ele queria lhe pedir uma polca, em alusão à subida dos conservadores ao poder. Pestana, entretanto, não suportava mais compor apenas o que os outros queriam e faz ironia de sua própria situação:

    “– Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
    Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.”

    Machado era um cético, e a ironia com que observa o mundo de seus personagens repassa esse seu ceticismo e a sua visão crítica em relação à humanidade. Ele emprega a ironia para denunciar aquilo que o ser humano tem de ruim – ganância, hipocrisia, mesquinhez – e, ao fazer isso, acaba, ironicamente, criando uma coisa muito boa: cumplicidade com o leitor. Isso acontece porque, para entender uma ironia, precisamos antes, claro, conhecer a situação ou informação que deu origem a ela. Quando a deciframos, então, nos sentimos incluídos no jogo, no esquema da obra. Ao nos oferecer suas observações e situações irônicas, Machado nos inclui, nos envolve na rede que teceu (e jogou), nos provocando um sorriso de conivência e de prazer. Aliás, prazeres. Prazer pela compreensão da ironia e, também, pelo contato com um escritor que é um craque no uso desse recurso sofisticado da linguagem. Machado nos dá prazer também por ser quem ele é, um escritor perspicaz, crítico e refinado.

    Woody Allen também acha isso. Impressionado com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o cineasta declarou o seguinte, em entrevista ao jornal O Globo (1996): “Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é incomum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irônico”. De fato. São características como essas que fazem do “bruxo do Cosme Velho”, como o chamou Drummond, um escritor genial – e absolutamente atemporal. Machado é para ser lido sempre. Então leia-o, por favor. Você vai confirmar tudo o que escrevi neste artigo.

     

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    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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