“Ficou ótimo, Lucas, parabéns!”. Não me lembro de me sentir tão orgulhoso profissionalmente antes ou depois de ler esta linha, com que Daniel Piza começava o e-mail enviado para mim da África do Sul, aonde tinha ido cobrir a Copa do Mundo de 2010. Eu o havia entrevistado pela segunda vez, para o MM, e mandado o link para ele. Na primeira entrevista Piza já havia sido muito gentil e elogiado o material resultante. Mas agora ele estava lá no meio da fuzarca da Copa, trabalhando, como me diria depois, “24h por dia, sete dias por semana”, e tinha reservado 1min para me responder. Que máximo.
Máximas foram também as lições que aprendi com ele, pessoais e profissionais. Este texto é insuficiente para enumerar todas e para salientar a importância de Piza para a imprensa cultural brasileira das últimas duas décadas. Morto repentinamente no dia 30 de dezembro, aos 41 anos, ele é um de meus mestres. Ao lado de Paulo Francis e Millôr Fernandes, foi responsável por me fazer querer ser jornalista cultural. E um jornalista cultural como ele, denso, provocativo, original. Piza era tudo isso. Fugia da mesmice. Independente, não fazia concessões ao senso comum ou ao politicamente correto. Desprezava patotas. Buscava a elegância na forma e no conteúdo dos textos. Lançava um olhar refinado mesmo sobre os temas mais simples. Sua referência era a tradição do jornalismo cultural de língua inglesa, da revista americana New Yorker a jornalistas e escritores como H. L. Mencken e Edmund Wilson. No livro “Jornalismo Cultural”, presente no topo da bibliografia para minhas aulas, apresenta com gosto a história de veículos como, além da New Yorker, também The Spectator e Esquire, e grandes jornalistas e críticos como Bernard Shaw e Karl Kraus. Destaca, ainda, experiências brasileiras quais a revista Senhor, editada por Francis, e O Pasquim, é claro. A turma do semanário carioca, aliás, igualmente o influenciou. Tinha muito da contundência e da vastidão cultural e jornalística de Francis, que foi seu amigo e incentivador, mas também apreciava Ivan Lessa, Ruy Castro e Sérgio Augusto. Nem preciso ressaltar que, com essas influências, ironia era um dos recursos que Piza dominava.
Aprende-se a ser jornalista cultural lendo os grandes jornalistas culturais, não há ‘fórmula’ – vivo dizendo. E eu, com Piza, aprendi demais. Suas resenhas, reportagens, entrevistas e colunas estão todas no seu site, que tantas noites passei lendo. Ele era o melhor jornalista cultural brasileiro em atividade. Crítico do academicismo de tantos intelectuais da pátria amada (aqueles que confundem “ter cultura” com apenas acumular informações e “falar difícil”), exprimia sua grande bagagem cultural por meio de uma redação clara e direta, acessível a todos. Colunista de cultura de O Estado de São Paulo desde 2000, passou nos anos 1990 pela Folha de S.Paulo, pela revista Bravo! e foi diretor do Caderno Fim de Semana, da Gazeta Mercantil, uma das mais marcantes experiências de jornalismo cultural da imprensa brasileira. “Jornalismo Cultural”, de 2003, é a melhor referência sobre a área, no Brasil. É de Piza também “Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro” (2005), biografia do nosso maior escritor, a qual julgava ser a obra de sua vida, e o livro-reportagem “Amazônia de Euclides” (2010), para o qual refez o percurso realizado pelo escritor Euclides da Cunha no rio Purus, no Acre, em 1905.
Sua coluna no jornal, a “Sinopse”, lembrava o “Diário da Corte” de Francis: abria com um texto maior e depois ia para notas e aforismos. Até minicontos, às vezes, apareciam. Quando um artista, escritor ou jornalista importante morria, escrevia “Uma lágrima para...” – expressão inspirada em título de Wilson – e comentava o seu legado. Versátil, nesses tempos de hiperespecialização, analisava com propriedade literatura, cinema, música, artes visuais (aprendi com ele a não usar “artes plásticas”), e também ciência, política e futebol, mas sempre com um enfoque cultural, sempre pinçando os clichês, valores e (geralmente, maus) costumes nacionais espelhados nos fatos vindos dessas áreas. Dizia-se essencialmente um jornalista cultural, e o foi, como poucos, pouquíssimos atualmente. Levou patadas em função de lapsos que, por escrever muito e rápido, cometeu em alguns artigos. Retificava, mas não sem frisar aos chatos que “criticar não é revisar”. Respondia às “críticas” que considerava insensatas. Polemizou com Wilson Martins, com Luis Augusto Fischer e com outros jornalistas. Os que o admiravam, porém, eram muitos mais.
No seu blog, movimentado, estimulava o debate. Diferente de outros blogueiros, lia os comentários de leitores e os incentivava. Raramente agradecia a cumprimentos e reações favoráveis. Aos que discordavam, pedia que a discussão fosse amparada em argumentos, e não partisse a ataques pessoais, coisa comum nessa cultura “cordial”em que vivemos (Sérgio Buarque era, para ele, o maior intelectual brasileiro). Muitas vezes, respondia de modo definitivo às questões levantadas pelos leitores. E sempre reclamando um nível maior de exigência, do público e da crítica, frente às pobrezas culturais do país. Piza não gostava de populismo. Acreditava ser possível seduzir o leitor para assuntos mais “complexos”, atraí-lo nivelando o jornalismo para cima, nunca para baixo. Se lhe pediam ‘conselho’ para ser jornalista, dava: “leiam”. Por sinal, não entendia como poderia haver jornalistas culturais incultos...
As ocasiões em que conversei com ele, por telefone e pessoalmente, foram um prazer e um privilégio. Como já comentei com amigos jornalistas, Piza tinha tudo para “se achar”: farta cultura, amigo de Francis, editor e colunista de um grande jornal, autor de 17 livros... Mas não. Era muito atencioso e tranquilo. Me chamava de “cara”. Cumprimentava e tratava todos bem, atendia a pedidos de entrevista para TCCs de jornalismo, participava com disposição de seminários e feiras do livro no país e no exterior. E ainda lia assombrosamente, lia muito. E colaborava com revistas. E fazia comentários no rádio e na TV. E escrevia no blog. E, de uns meses para cá, embora desconfiado (ainda bem!) do oba-oba em torno das mídias sociais, mantinha um twitter. Citou Mário de Andrade, certa vez, para explicar como conseguia produzir tanto: “Eu sou 300, sou 350...” Quando tomamos um café no Estadão, em 2010, disse-me, entre uma boa história e outra, que estava envolvido com uma biografia de Iberê Camargo, para ele um dos maiores pintores brasileiros, se não o maior. Adorava o museu que leva o nome do artista, aqui em Porto Alegre. Várias vezes perguntei, nos últimos dois anos, quando ele viria ao RS colher informações para o livro. Sempre dizia que viria em breve. Ótimo, eu respondia, vou poder retribuir o café. Não deu tempo.
Compartilhava com ele a leve irritação com pessoas fazendo fila para ganhar autógrafo de escritor. Mas para o Daniel Piza eu peço autógrafo, falei, quando passei o “Jornalismo Cultural” para ele assinar. Ele riu e consentiu. Escreveu: “Para Lucas, esperando que siga na mesma toada. Abraço do Daniel Piza”. Vou tentar, cara. Obrigado por me dar as instruções. De qualquer maneira, a falta será imensa.
* Texto originalmente publicado no site da revista Continente Multicultural.