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    Por que ir às “Raízes”


    Muitos brasileiros têm-se espantado com as desavenças políticas – ou, como preferem uns, a “intolerância” – dos últimos tempos. Como é possível populares, na rua, dirigirem palavrões à então presidente da república? Como é possível uma celebridade cuspir num casal que discorda de seu apoio ao partido que estava no poder? E uma médica se recusar a atender o filho de um militante petista, enquanto uma editora rejeita lançar livro já aprovado porque seu conteúdo é crítico ao governo petista? E as trocas de insultos entre “coxinhas” e “mortadelas” nas redes sociais? Não somos um povo pacífico, “cordial”?...

    Pois a surpresa maior é... haver surpresa. A polarização política atual não é a primeira registrada nestas terras tropicais. Para lembrar duas: no fim do século 19, o Brasil se dividiu em monarquistas e republicanos (momento muito bem representado no romance “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis); em meados do 20, em getulistas e lacerdistas. O espírito de patota também sempre se fez presente no campo da cultura: praticantes de um cinema facilmente digerível (“comercial”) x cinema de linguagem rebuscada (“de arte”), artistas concretos x neoconcretos, fãs de telenovelas x fãs da opinião de que telenovelas “alienam”... O passionalismo, aqui, é constante, em praticamente todas as discussões e atitudes.

    Sabe disso quem alia o conhecimento de História à observação do cotidiano brasileiro e à leitura do clássico “Raízes do Brasil”, do ensaísta e historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-82). O livro é a melhor interpretação do Brasil já realizada, a obra mais importante já escrita de análise histórico-cultural brasileira. Neste 2016, completa 80 anos de publicação, continuando, como todo clássico, a nos iluminar questões, a nos ajudar a compreender quem somos e onde estamos. Nosso caráter extremado, que faz mesmo os debates mais inocentes serem levados ao lado pessoal, como se fossem questão de honra, é corolário do que Buarque chama de “cordialidade” brasileira, conceito apresentado no capítulo 5 do livro, O Homem Cordial. Muitos, inclusive, entendem o conceito erroneamente, ao distinguirem só o lado festivo da ideia – a noção de que o brasileiro é acolhedor e simpático, o que é, mesmo –, sem percebê-la no todo. Ao identificar “cordialidade” no brasileiro, Buarque faz um alerta, quase uma crítica, ao seu povo.


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    Cordial vem do termo latino cordis, que significa “coração”. O brasileiro seria guiado mais pela emoção que pela razão, um povo no qual se verifica um “predomínio do elemento emotivo sobre o racional” e que, assim, não consegue conceber relações sociais fora dos critérios de afeto. Valoriza mais laços de amizade do que mérito, mais imediatismo do que raciocínio de médio e longo prazo, mais improviso do que organização. Ou seja, Buarque avisa: cuidado, brasileiros. A tendência de sempre agir com o “coração”, para o bem ou para o mal, traz mais problemas do que benefícios.

    Um desses problemas é levar o modelo familiar, caloroso, pessoal, ao espaço público, o que asfixia o interesse da coletividade. Esse pendor se explica, é claro, pelos nossos primórdios: “Raízes do Brasil” mostra que, no longo período colonial, o quadro familiar era o mais poderoso; os engenhos eram como pequenas cidades comandadas pelo “pai”, o senhor de engenho. Em decorrência disso, o brasileiro ganhou, como traço de comportamento, não admitir relações formais e transformar tudo em matéria pessoal, com a emoção se sobrepondo ao planejamento e a normas de convivência e concorrência, a leis (“Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro”). Burla regras – o famoso “jeitinho” – e trata espaços públicos (impessoais) como extensão de sua casa, sem distanciamento.

    Para buscar exemplos disso, nem é preciso ir à política. As Olimpíadas do Rio de Janeiro foram outro fato recente em que muitas condutas filhas do “homem cordial” ficaram expostas. Ao mundo, aliás. A imprensa internacional estranhou a mania dos torcedores locais de vaiar e xingar adversários de nossos atletas, quaisquer que fossem, mesmo em esportes “frios” como tênis de mesa e salto com vara (“O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.”). Competidores estrangeiros disseram que a reação intensa do público os desconcentrou e os prejudicou nas provas. Chamou a atenção dos visitantes, ainda, nosso desapreço por cumprir horários e nossa disposição ao improviso, à gambiarra, perceptível em algumas instalações erguidas no Rio, em soluções dadas a problemas logísticos e mesmo na cerimônia de abertura, entendida por um de seus diretores justamente como uma celebração do jeitinho, devido aos cortes no orçamento. Pois a leitura de “Raízes do Brasil” permite compreender que o brasileiro comporta-se do modo mais informal possível e tende à desorganização por não se identificar com regras estabelecidas para o convívio social, que valem para todos e são, portanto, impessoais. Os laços que importam são os afetivos. Norteado sempre por princípios emotivos e familiares, o brasileiro é incapaz de lidar com questões que exigem postura mais distanciada e “clínica”. Isso responde, em boa parte, por que consideramos o estilo contido de alemães e franceses, por exemplo, muito antipático, “metido”. Ainda que seja o de um francês que chora no pódio pelas vaias que recebeu da plateia no estádio...

    Patrimonialismo – “Raízes do Brasil” também dá conta de que, ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não nasceu sob valores liberais, e sim sob uma confusão entre os âmbitos público e privado (“a gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular”). É o chamado Patrimonialismo, notabilíssimo hoje devido ao escândalo do petrolão, a descoberta de que, numa empresa pública, se montou um esquema de corrupção que beneficiou determinado grupo político e seus aliados. Tantos favorecimentos, privilégios, tentativas de salvar amigos demonstram que “A ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós” (cap. 6). O Brasil, o autor nos explica, não conseguiu se livrar de sua herança ibérica: personalista, aventureira, descompromissada. E o catolicismo faz parte do pacote. Buarque observa que a religião trazida pelos colonizadores portugueses contribuiu, por valorizar desprendimento, para que não nos desenvolvêssemos como uma sociedade organizada – o oposto do ocorrido nos países anglo-saxões, cuja religião protestante valoriza disciplina, trabalho e acúmulo de riqueza. São muitos, enfim, os vícios de origem a nos puxar para baixo.

    Quase como num processo de psicanálise, “Raízes do Brasil” vai à infância e à adolescência do país para entender o adulto problemático que ele se tornou. Sérgio Buarque chegou a afirmar, 12 anos após a primeira edição do livro, que o homem cordial, forjado no nosso passado agrário, desapareceria com a urbanização e a industrialização do Brasil. Não desapareceu. Apropriação da coisa pública por interesses privados e comportamento emotivo continuam marcas culturais indeléveis por aqui. Neste 2016 em que faz 80 anos, (re)ler esse clássico pode nos levar a refletir que, em meio a tanto clamor por mudanças, talvez a maior que a sociedade brasileira precisa fazer, para finalmente se inserir no mundo moderno, é a mais difícil e lenta, por demandar tomada de consciência, educação e reformas: mudança de mentalidade. Mudança naquilo que está mais enraizado em nós.

    * Texto originalmente publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, em 26 de novembro de 2016.

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    @lucas_colombo


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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