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    Quarteto em sol menor


    Tão distantes, tão distintos. Mas tão próximos, tão parecidos. Tão permanentes. Ivan Ilitch, Willy Loman, Pestana e Castelo foram criados por escritores afastados geográfica e temporalmente – na ordem, Lev Tolstói, Arthur Miller, Machado de Assis e Lima Barreto – e, como todo grande personagem da literatura, dão representações múltiplas do que é a humanidade. Os quatro, porém, contribuem para explorar a questão mote desta edição da Revista da Cultura* ao se associarem em um ponto meio sombrio, mas de abordagem inescapável: têm com seus trabalhos uma relação negativa, eivada de sentimentos e propósitos não muito alentadores, pelo menos ao olhar do leitor.

    Tolstói, autor de “A morte de Ivan Ilitch”, novela que completa 130 anos de publicação neste 2016, cumpriu com seu protagonista, um burocrata arrivista da Rússia do século 19, a máxima de que também é autor: “Se queres ser universal, comeces por pintar a tua aldeia. Fales da tua aldeia e estarás falando do mundo.” Pois uma das verdades universais que se depreendem da conduta de Ivan, e também das de Willy e Pestana (Castelo é outra coisa, já veremos), é a de que nem todo mundo trabalha porque gosta do que faz ou porque acredita que seu ofício é importante na sociedade. Há quem trabalhe por razões menos “nobres”: ganhar poder e fama, manter aparências ou abafar frustrações pessoais, por exemplo. Algo um tanto óbvio, mas nem sempre percebido.

    Óbvio, preocupante e atual. Hoje, é comum ver jovens escolherem uma profissão não por se identificarem e apreciarem, e sim por ser bem paga ou garantir emprego pela vida toda, caso do funcionalismo público. Depois, tornam-se adultos frustrados e... bem, temos de aguentá-los e indicar-lhes psicanalistas. Com a palavra, um deles – o psicanalista e escritor gaúcho Mário Corso: “Os profissionais mais frustrados que eu atendo são os funcionários públicos. O sujeito presta concurso ainda jovem, quando acha que o salário é um dinheirão – porque nunca viu dinheiro antes –, e depois que vira adulto descobre que não ganha muito, mas aí já tem 35/40 anos, filhos, largou a faculdade... Se frustra, porém não consegue sair do emprego público, pois é só o que sabe fazer e tem que sustentar a família”. Dilema, s.m., do grego dílemma.


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    Um emprego público é, justamente, o que mantém o personagem de Tolstói, mas a sensação que esse lhe provoca é outra. Ivan Ilitch é aético, esnobe e muito voltado às aparências e ao poder – e aí que entra seu ofício. Formado em direito, ele ganha um cargo de juiz, o que adora, visto que “era-lhe agradável passar com desenvoltura, em seu uniforme talhado por Charmer, junto aos solicitantes trêmulos que esperavam ser recebidos e aos outros funcionários, que o invejavam.” Ivan trabalha para alcançar um dado status, para projetar uma imagem de superioridade, em compensação à vida pessoal trivial. “A consciência de seu poderio, da possibilidade de aniquilar qualquer pessoa (...), o seu êxito diante dos superiores e dos que lhe eram subordinados e, sobretudo, a sua maestria em conduzir os casos criminais, que ele sentia, tudo isto alegrava-o e enchia-lhe a existência”.

    Para Ivan, o trabalho ainda desempenha outro papel: o de distraí-lo do casamento infeliz. “Na medida em que sua mulher se tornava mais irritadiça e exigente, ele transferia cada vez mais para o serviço o centro de gravidade da sua vida. Passou a gostar mais do serviço e tornou-se mais ambicioso”. O personagem representa o tipo de pessoa para quem o emprego é que significa repouso e prazer, não o lar. “Tem pessoas que amam segunda-feira, pois saem de casa. O ambiente doméstico, com parceiro, filhos e cachorro, é sufocante, e elas só se realizam trabalhando. Não porque o trabalho é bom, mas porque a casa é pior. É uma falsa realização”, comenta Corso.

    Não só falsa como breve. Após sofrer um acidente, Ivan definha por semanas, período em que o único que o conforta é o ajudante de copeiro da casa. A família cuida dele por obrigação, e colegas o visitam só para resolver pendências do foro, sem envolvimento emocional. Ou seja, Ivan passa a vida preocupado com imagem e fugindo dos problemas para, no fim, nem receber atenção desinteressada daqueles que queria impressionar. No leito de morte, dá-se conta de que sua existência foi um embuste – e sabemos disso pela prosa direta e implacável, como a morte, de Tolstói. Ivan Ilitch é um exemplo, na literatura, de indivíduo que vê na profissão um meio de não encarar a vida “lá fora”, ou, ainda, de apenas obter prestígio e frequentar certos círculos. Trabalho é um elemento fundamental na sua construção, e, segundo a escritora carioca Nilma Lacerda, na de qualquer personagem, por servir como traço de identificação: “Reflexo do humano, [trabalho] é espelho de dupla face, revelando tanto o exterior quanto o interior, e costuma definir o indivíduo”, afirma a também professora da UFF.

    Pesadelo americano – Outra história de morte (desculpe a morbidez, leitor) em que a relação problemática do protagonista com seu ofício tem função central é o clássico do teatro americano, também publicado em livro, “A morte do caixeiro-viajante” (1949), de Arthur Miller, dramaturgo que teria completado 100 anos em outubro último. Dele que vem Willy Loman, pai de família sexagenário e vendedor, durante a vida toda, de uma empresa que o despreza e despede por ele, cansado, não cumprir mais suas tarefas direito. Willy é um loser, um homem que fracassa nas tentativas de ser bem-sucedido, e joga na nossa cara a verdade incômoda: o sucesso não está ali na esquina, como escritores de autoajuda apregoam...

    Feito Ivan Ilitch, Willy procura sempre transmitir uma imagem de êxito na profissão. Ao contrário de Ivan Ilitch, só encontra humilhação nela, em vez da glória tão ambicionada. Quer percorrer o mesmo trajeto daqueles que realizaram o “sonho americano” e começaram do nada para, com esforço, atingir grandes posições, mas não consegue.

    Obcecado por ser um ídolo para seus filhos, Willy vibra quando um deles, Biff, logo o que não para em emprego algum, diz que quer abrir um negócio – o que não acontece, claro –, e recomenda a eles: “No mundo dos negócios, o homem que tem boa aparência, o homem que desperta interesse é o que faz sucesso. Sejam queridos e vocês nunca fracassarão. Vejam o meu caso. Eu nunca tenho que ficar numa fila para ver um comprador. ‘Willy Loman está aqui’, e pronto. Entro logo.” Quando, contudo, os planos dão errado, a realidade (ah, a realidade) se impõe e a fantasia acaba, ouve de Biff: “Não sou um grande homem, e você também não. Você nunca passou de um homem que trabalhou duro a vida toda e terminou na lata de lixo, como todos os outros!”. Seu drama é o mesmo de muitas pessoas, de todas as épocas. Iludido e angustiado pelas oportunidades que deixou passar, Willy, conforme entrega o título, encaminha-se para uma tragédia.

    Fama e malandragem – O desejo por ser célebre, que move Willy, igualmente move Pestana, personagem do conto “Um homem célebre”, um dos mais admirados de Machado de Assis. Mas ele, músico, gostaria de ser celebrado por outro tipo de trabalho que não aquele que, com sucesso, pratica, e sofre por isso. Pestana quer criar música de concerto, mas só é capaz de compor polca, gênero “pop” no fim do século 19, tempo em que se passa a história. Ele senta ao piano para elaborar uma sonata ou um réquiem... e o que sai é mais uma polquinha, rapidamente editada e popularizada (impossível não anotar a justificativa de seu editor para os nomes ridículos que dá às músicas: “Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.” Alguma semelhança com o cenário musical brasileiro atual?...). Diz Nilma: “Ao senso comum, alguém nessas condições está em paz com seu trabalho, mas ele é mordido pelo desejo de enfileirar-se entre Mozart, Bach, Schumann. Sua ambição mira a eternidade, a vocação acerta no tempo curto do presente”. Corso completa: “Pestana é o cúmulo da neurose. Ele faz algo bem, tem um valor, mas não reconhece e procura o que, de fato, não faz. É a eterna diferença entre o que se é e o que se almeja ser”. Nesse aspecto, parece-se com outro personagem machadiano, Brás Cubas, o medíocre que pretende ficar famoso como criador de um poderoso emplasto e, durante a pesquisa, além de não chegar a resultado algum, adoece e morre (tentando obter um remédio... a ironia de Machado é, literalmente, matadora).

    Se Ivan Ilitch é caso de trabalho como instrumento para adquirir status e poder; Willy Loman, de trabalho como meio de forjar uma imagem de sucesso; e Pestana, de profissional frustrado, Castelo, do conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, é exemplo de quem alcança o sucesso e a fama que esses três querem, porém por caminhos brasileiramente bastante condenáveis. Ele é um malandro que, precisando de dinheiro, se passa por professor de javanês e se dá muito bem. Não entende nada da língua malaia, só decora pronúncias e termos básicos; no entanto, como brasileiros têm o tique de país colonizado e católico de se ajoelhar para os “especialistas” (“Vejam só, um homem que sabe javanês – que portento!”, ouve), é indicado para um cargo no governo, para participar de congressos, escrever nos jornais (o “javanês” de hoje é o número de seguidores no twitter?)... “Todo um percurso de carreira sem que se revele o menor vínculo do indivíduo com o trabalho, que o leitor não consegue vislumbrar enquanto tarefa objetiva”, observa Nilma. De Castelo, remorso parece andar longe. Fingir saber o que não sabe e lucrar com isso é só mais uma das “partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”. O personagem lembra uma categoria que adora mentir e ganhar fortunas, atualmente muito discutida no Brasil...

    Esses quatro personagens clássicos da literatura e suas ligações, de certo modo, desumanizadoras com o trabalho podem, enfim, nos ajudar a perceber atitudes tomadas sem reflexão e a perder ilusões quanto à vida profissional. “Cair na real” é duro, mas fundamental: não existe sucesso pleno, nem emprego dos sonhos que não cobre um preço pessoal. “A geração de hoje é mais pragmática que a anterior. Pensa que não existe ‘vocação’ ou real satisfação com trabalho, que ‘emprego é emprego’, está-se ali para fazer algo chato e ser pago. Mas tem o oposto, o das pessoas mimadas, que tiveram infâncias muito protegidas e buscam algo que não existe: um ofício que só dê prazer. Ou seja, ninguém entende que todo trabalho tem altos e baixos. É uma posição infantil”, diz Mário Corso. E conclui: “Vivemos num país pobre, não dá pra fazer só o que se quer e ainda ganhar muito. Tem que cair a ficha.” Vamos trabalhar nisso?

    * Texto originalmente publicado na Revista da Cultura de março/abril de 2016.

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    @lucas_colombo


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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