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    Centenário da independência - Iberê Camargo


    Um casal de mãos dadas sorri e conversa enquanto olha rapidamente as pinturas. Estudantes adolescentes, em visita guiada, parecem se divertir. Uma senhora, porém, diante de uma tela na qual, em pinceladas vigorosas de preto, cinza, marrom e vermelho, o pintor autorretratou-se com expressão e gesto de espanto, dá um muxoxo e fala à amiga: “Não gosto do estilo dele. Muito tétrico”. Talvez não saiba ela que, em arte, muitas vezes, a reprovação do público depõe a favor do artista. Inclusive, para o autor em exposição, Iberê Camargo, arte não deveria ser algo “palatável”: chegava a desfazer uma pintura se ouvisse um ajudante ou visitante, no seu ateliê, dizer que tinha gostado dela. Poderia até ficar satisfeito, portanto, com o juízo negativo da senhora sobre seu trabalho.

    Estamos no segundo andar da Fundação Iberê Camargo (FIC), um dos prédios de museu mais bonitos do país, localizado à beira do lago Guaíba, zona sul de Porto Alegre. Inaugurado em 2008, leva o nome daquele que é um dos maiores artistas visuais brasileiros, se não o maior, e foi criado exatamente para preservar e celebrar sua obra. A mostra que despertou as reações acima é parte da programação montada em função do centenário de nascimento de Iberê, lembrado neste 2014. Seu título é o mesmo daquele romance que virou filme: “As horas”. Estão nela pinturas e desenhos que Iberê fez no final dos anos 1970 e durante os 1980, como “Grito” (1984) – a descrita no parágrafo anterior –, “O relógio” (1988) e seis das dez telas da série “Hora” (1983-84), em algumas das quais ele se colocou, em autorretratos sempre sérios, junto a carretéis e dados, elementos de fases anteriores, e mãos espalmadas (a querer parar o tempo?). Ora etérea, ora pulsante, a série guarda as características com que Iberê é hoje reconhecido: cores escuras, pinceladas velozes, camadas grossas de tinta, tom soturno, nenhuma concessão emotiva. Arte indigesta? Arte.

    Se Iberê não tinha intenção de agradar ao público, tampouco tinha de agradar a seus pares ou embarcar no que era “moda” na arte. Foi, antes de tudo, um espírito independente. Em sua trajetória, nunca se vinculou a um movimento ou grupo, postura rara no cenário cultural brasileiro. “Iberê foi primordialmente um homem valente”, afirma a escritora Nilma Lacerda, autora dos romances “Manual de tapeçaria” e “Sortes de Villamor” e do que não considera uma biografia, mas também um romance, com o pintor como protagonista, intitulado justamente “Um homem valente – fricções” (“Dei o subtítulo pensando num gênero em que pintura e literatura se tocam, friccionam”, explica), ainda inédito. Iberê, completa Nilma, “sem pedir licença – posso pensar assim, posso pintar assim, posso desnudar dessa forma o mundo que entra em mim? –, foi fiel a si, atendeu aos movimentos internos que pediam uma expressão autêntica, variável segundo impulsos expressivos pessoais”. Coerente consigo próprio, ousado, autêntico – “independente”, enfim, é o adjetivo sintetizador. E tal qualidade manifestou-se por várias vezes.

    Guerras


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    Iberê nasceu no interior do Rio Grande do Sul, em Restinga Seca, município pequeno a que não fez menção explícita em seus quadros (mas esses o contêm, por apresentarem “secura e isolamento”, diz Nilma). O ano, 1914, foi o mesmo em que o conflito que entraria para a História como a 1ª Grande Guerra teve início. Na vida do artista, outras guerras, internas, as que dizem respeito a escolhas, desenrolaram-se, com vitória sempre do lado que pleiteava independência. Em 1942, aos 28 anos, Iberê exprimiu esse caráter ao sair da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (cidade para a qual se mudou após receber uma bolsa) por divergir da sua orientação acadêmica. Foi ser aluno de Guignard e, depois, na Itália, de De Chirico. De volta ao Brasil, mais adiante, no final da política e culturalmente rica década de 1950, demonstrou de novo sua afeição à desafeição ao deixar de lado o figurativismo, que vinha exercitando com paisagens urbanas e naturezas-mortas, e adotar o abstracionismo, num período em que, no Brasil, os pintores mais festejados – afora Guignard, ainda Di Cavalcanti e Portinari – dedicavam-se à figura e, no exterior, os abstratos perdiam força. A mudança ocorreu com a criação das telas que formariam a conhecida série “Carretéis”. Impedido por uma hérnia de disco de sair à rua para desenhar paisagens, Iberê começou a pintar coisas disponíveis no ateliê, como garrafas e bules, até evocar os brinquedos da infância humilde, os quais, depois de representar empilhados sobre a mesa, em linhas definidas, foi dissolvendo, descaracterizando como “objetos”, para no fim fazê-los somente itens polimorfos a flutuar no espaço.

    Logo, das formas geométricas e ordenadas do construtivismo, estilo abstrato mais em voga na época (com Volpi, por exemplo), Iberê também não se aproximou. Igualmente, não se deixou levar pelo concretismo, “filho” da arte construtiva, nem por seu desdobramento, o neoconcretismo de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Ferreira Gullar, este seu amigo. Gullar, aliás, num artigo publicado no ano seguinte à morte do pintor, observou a independência dele: “Essa radical convicção de que o artista deve manter-se fiel a si mesmo a qualquer preço é uma resposta negativa de Iberê aos apelos da vanguarda que procurava a todos arrastar em sua corrente”. Uma frase do próprio Iberê que resume sua conduta parece complementar a do poeta: “Quem nada a favor da corrente é peixe morto”.

    Feito outro grande artista brasileiro que contrariou o senso comum, Machado de Assis, Iberê atingiu o ápice na maturidade. E isso se deu com uma nova mudança de rumo, talvez potencializada por uma tragédia pessoal. Em 1980, no Rio, ele, que então andava armado, matou um homem ao intervir numa briga de rua. Absolvido no julgamento, retornou a Porto Alegre – e ao figurativismo. O abstracionismo expressionista praticado nos 1960/1970 cedeu lugar à figura humana de maneira espetacular, em autorretratos (estaria Iberê investigando quem era, depois do que cometeu?), como os agora expostos na FIC, e na série “Ciclistas”, lírica e densa ao mesmo tempo, em que homens e mulheres espectrais andam de bicicleta no nada e sem rumo. Formam um conjunto intenso com as telas das séries finais, “As idiotas” (1991) e “Tudo te é falso e inútil” (1992-93), poderosas em seus mais de 2 metros de comprimento a trazer figuras humanas despidas que, sentadas sós, imersas em azuis, violetas e lilases, parecem apenas... esperar. “No vento e na terra”, de 1991, mostra alguém caído da bicicleta numa área deserta. Exala drama. “O que posso fazer? Tenho uma visão trágica da vida. Não sou um homem alegre, não vejo futuro para a humanidade”, justificou Iberê. Ele, frise-se, peixe vivo novamente, iniciou essa última fase figurativa antes de o figurativismo voltar com vigor no Brasil, em meados da década de 1980, pelo trabalho dos artistas da chamada “Geração 80”. Para alguns deles, inclusive, a exemplo de Nuno Ramos e Paulo Pasta, Iberê virou referência.
     
    Não é preciso, porém, analisar cada fase para saber que ele destoou de tendências dominantes. Vista no geral, a obra de Iberê já se distingue do costumeiro na nossa arte. Afinal, caracteriza-se pelas cores escuras e a atmosfera angustiada e sombria, ao passo que o estereótipo visual brasileiro é colorido, brejeiro e festivo (pense em Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e, mais recentemente, Beatriz Milhazes). Isso permite, também, uma leitura sociológica importante: Iberê, além de tudo, revela que o Brasil possui um lado trágico, desagradável (o conhecemos bem), e não apenas sol, “vida boa” e povo alegre. Até porque alegria demais, muitas vezes, é sinal de desespero.


    Desânimo e solidão

    A independência de Iberê se fazia notar, ainda, em suas opiniões. Ele jamais se furtava a dizer o que pensava (às vezes, até agressivamente), neste país onde tal atitude é tachada de “arrogante” e “reaça” (?). O Brasil, por sinal, e a postura dos governos quanto à cultura foram alvos de seus ataques. Após tentativa fracassada de vender pinturas para ajudar vítimas da Aids, em 1993, afirmou que o Brasil era “um gigante com cabeça de galinha”. E não parou: “Nunca vi tanta falta de grandeza. Ninguém dá valor à cultura. Estou aqui lutando contra o IPTU do meu ateliê. (...) Times de futebol são isentos de IPTU”. Na mesma ocasião, perguntado o que significava ser um artista renomado, respondeu: “O Brasil não anima ninguém. Eu estou na luta, é só”. Sobre a produção artística nacional de seu tempo, era também muito crítico. Disse, na sua última entrevista, que havia “só bugiganga” na área e que a maioria dos artistas não tinha talento. A propagação da dita “arte contemporânea”, a partir dos anos 1970, de igual modo o fez marcar posição – contrária, é claro: “Instalação, para mim, só elétrica ou sanitária”, declarou, certa vez. Parecia não gostar da efemeridade que identificava nessas criações: “Se, em vez de pintar Os Girassóis, Van Gogh tivesse colhido as flores, posto num vaso e feito uma ‘instalação’, o que teria sobrado hoje?”.

    Iberê faleceu em 9 de agosto de 1994, dias após terminar “Solidão”, o último quadro, de 2x4m. No hospital, falou à mulher, Maria, que queria retocá-lo, mas não pôde. Nem precisava. Com seus três vultos a flanar no vazio, “Solidão” é uma das mais belas telas brasileiras – avaliação partilhada por outro admirador de Iberê, o jornalista e crítico Daniel Piza, morto precocemente em 2011, quando estava para começar uma biografia do artista, a ser lançada neste centenário. “Iberê é como sua pintura: cético, mas irresistível”, escreveu ao entrevistá-lo, em 1993.

    A arte permanece. Na FIC, “As horas” segue até 9 de novembro. Nesse mês, então, o exato dos 100 anos de Iberê, uma grande mostra, com trabalhos dele e de artistas da atualidade, tomará o museu, no que tem sido tratado como o evento “oficial” da efeméride. Mas Iberê não tem sido abordado só em Porto Alegre. Em São Paulo, o Centro Cultural Banco do Brasil encerrou em julho a retrospectiva “Um trágico nos trópicos”, com 145 obras, e a Pinacoteca do Estado abriu em agosto uma mostra voltada às gravuras, que vai até 31/01. Rio de Janeiro e até cidades da Europa deverão, também, abrigar exposições de Iberê, em 2015. Bastante gente, assim, poderá conhecer ou aprofundar-se numa das obras mais expressivas e complexas da arte nacional, desenvolvida por um homem independente no estilo, nas relações, na carreira, nas opiniões. Independência. Se há um exemplo que a vida de Iberê deixou para o meio cultural brasileiro, é esse.

    * Texto originalmente publicado na Revista da Cultura de outubro de 2014.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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