Sexta-feira, 8 de agosto de 2008. Dia nublado em Porto Alegre. Saio de casa disposto a fazer um giro pelas exposições em cartaz na cidade. Há três importantes, nos maiores espaços que Porto Alegre tem para artes visuais: o pintor Iberê Camargo na recém inaugurada Fundação que leva seu nome, arte de rua no Santander Cultural, e fotografias de Flávio Damm no MARGS.
Pego um táxi para ir ao Iberê. Sabe aquele prédio novo, a Fundação? É lá. Avenida Padre Cacique, 2000. O taxista acha que sabe. Chegamos. Por fora, o prédio, desenhado pelo arquiteto português Álvaro Siza, parece dar razão aos críticos que o apelidaram de bunker. Entro nele. Boa tarde, recepcionista. A recomendação é começar pelo 4º andar. Tomo o elevador. 1, 2, 3, 4º andar. É neste que estão as obras de uma das fases mais significativas de Iberê, a dos ‘carretéis’. O texto impresso na parede, logo visualizado quando se sai do elevador, ressalta que o “tom ora grave, ora exasperado dos trabalhos ecoa o sentimento de desenraizamento e incomunicabilidade do artista moderno”. Entro na sala. Impacto: os trabalhos são, de fato, vigorosos, como apontou a crítica. Tensão entre espaço e obra: paredes muito brancas e telas soturnas, escuras. Ambiente claro. Muita luz. O prédio realmente engana – quem olha de fora pensa que tem poucas aberturas, mas o espaço é muito bem iluminado por dentro. Por fora, me remeteu ao Guggenheim. Quando entrei, lembrei o Malba. Vamos às pinturas. Abstratas. Décadas de 1960 e 1970. “Movimento”, 1966. Várias camadas de tinta. “Signos II”, 1975. Observo de perto. Pinceladas intensas. Grossas camadas de tinta superpostas. Do tubo para a tela. Onde estão os carretéis? Ah, aqui. “Mesa verde com sete carretéis”, 1959. Desço a rampa, para o 3º andar. Paro e olho pela janela o lago Guaíba. Penso na vida por um instante. Torno a descer. O trabalho da mineira Iole de Freitas, montado no átrio, ocupa o campo de visão. Mas darei atenção a ele depois. Esse prédio é mesmo muito interessante. De uma sala, vê-se as outras. Eis os ciclistas – é a volta de Iberê à figuração, nos anos 1980. Telas sombrias e bonitas. “A idiota”? Lilás, azul, violeta, preto. As idiotas. O ciclista. Grande: 200 x 155 cm. Desço a rampa de novo. Toc, toc – o salto da mulher na minha frente faz barulho. “Prédio muito bonito”, diz ela para o homem que a acompanha, “mas não sei se ele merecia”. Merecia sim, minha senhora. Não contribua para o Febeapá. Vamos adiante. Guaíba na janela again. O sol bate na minha cara. “Curva acentuada”, é a placa na rua. Curvas acentuadas aqui dentro do museu também. Dobro. Entro na sala. 2º andar. Últimas séries de pinturas de Iberê. “Maria”, 1990. Série “Tudo te é falso e inútil”. “Sem título”, 1991. Vermelho e roxo. “Auto-retrato”, 1984. Ah, finalmente as telas que eu mais queria ver: “No vento e na terra”, 1991 e 1992. Grandes e dramáticas. Olhar desencantado de Iberê sobre o mundo. Vamos à rampa. Rumo ao átrio. Agora sim, Iole de Freitas. Lâminas de policarbonato transparente, trespassadas por barras de aço. Vai do átrio até o 4º andar. A estrutura ocupa o vão de 22 metros no hall. Duas senhoras conversam. O que estão achando? “O prédio está competindo com a exposição”, comenta uma delas. “O prédio é lindo e bem planejado. Vê-se que o Siza é um dos maiores arquitetos do mundo”, completa. É. E o Iberê talvez seja o maior pintor brasileiro. “Iberê: Moderno no Limite”. Estou no limite. Fome, vontade de sentar. Me vou. Bye, bye, Fundação. Valeu a pena. Me arrependi de não ter trazido a câmera. Satisfeito, vou tomar um café e ler os vários folders que retirei na recepção.
Agora, sigo para o Centro. Santander Cultural, na Praça da Alfândega. Desço do lotação na Av. Borges de Medeiros. Caminho. Caminho. Chego. Tenho que deixar a pasta na recepção (odeio). Empurro a porta (ugh!). Som de skate em caixinhas de som. É arte de rua. Rampas. Cores laranja e azul. Marcas de skate no chão. Cultura urbana. Nina Moraes, Trampo. Street Fine Art. Entro à direita. Titi Freak. Silvana Mello: “Céu dos Cachorros”, 2008. Dobro de novo, à esquerda. Vejo o painel que o artista urbano Francisco Rodrigues fez com base na foto de uma tribo indígena isolada no Acre, que a FUNAI divulgou em maio. Penso na permanência de um trabalho desses. Tem valor estético suficiente para durar mais que o período da mostra? Francisco é mais conhecido como Nunca. Nunca mais? Por ora, vou até a tinta sobre tecido do artista MZK, “Sem título”, 2000. Foi usado como cenário do lançamento de um disco da banda Nação Zumbi. Tons de cinza, branco e preto. Ando um pouco e paro, por quatro minutos, para ver o vídeo “Eu sou como o polvo”, de Sávio Leite, com texto e desenhos de Lourenço Mutarelli. Entro na salinha ao lado. Dois balões dependurados desde o teto. No geral, trabalhos que chamam atenção mais pelo tamanho e pela disposição do que pelo valor artístico. Subamos ao 2º andar. Muitas fotos: registros de trabalhos dos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos como osgemeos, e de skatistas em ação, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ângulos interessantes. Bem sacadas. Gostei. Mas a exposição já está me cansando. “Transfer” é simpática, mas, como diria Paulinho da Viola, “nada capaz de despertar minha alegria”. Acho que vou para o MARGS.
Pego minha pasta na recepção e saio. MARGS é logo ali, na mesma Praça da Alfândega. Só dar uns passos. Pronto, cá estou para conferir o fotojornalismo de Flávio Damm. “Preto no Branco” é o nome da mostra. 80 imagens. Boa tarde ao recepcionista. Não preciso deixar minha pasta aqui (adoro). Subo a escada coberta com tapete bordô. As fotos estão no 3º andar. Mais um lance de escadas. Dobro. Iberê sempre presente: a Galeria tem o nome dele. Entro. Só eu na sala, ótimo. Ar condicionado à toda. Às imagens, enfim. Todas selecionadas pelo próprio Damm, a partir de um arquivo pessoal de cerca de 60 mil negativos. Ele começou a carreira em 1944, na Revista do Globo. Primeira foto: Getúlio Vargas em 1948, após três anos de auto-exílio em São Borja. Na mesma parede, veja só, a Rua da Praia em 1946, e um casal se beijando na Paris de 1989 – estariam comemorando o bicentenário da revolução francesa? Uma praça em New York, 1957. Paris, Museu d’Orsay, 1999 – bela composição. Da janela, vê-se o Corcovado – 1956. Em Paraty, 2006, chapéus sobre a mureta, com o mar em segundo plano. Humor perspicaz, esse da foto de Copacabana/RJ, 2004. Linhas sinuosas do Museu de Arte Contemporânea de Niterói/RJ, projetado por Oscar Niemeyer (projeto criticado, aliás). Uma banda de rua toca em Nova Orleans, 1997. O Katrina viria só dali a oito anos. Trompete, trombone e tambor, na cidade berço do jazz. Que ótimo. Damm não retoca as fotos. Photoshop, nem pensar. Nem precisa.
Acabou. Desço as escadas, abro a porta para sair. Rua. Praça da Alfândega novamente. Vou-me embora. Até breve.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).