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    Coisas entre o céu e a terra


    Religião é algo que, ao mesmo tempo, me atrai e me repele. Gosto de discutir o assunto, mas reluto muito a adotar uma crença. O Luiz Buñuel já disse: "sou ateu, graças a Deus". Apenas tenho curiosidade em relação a certas religiões. Afora isso, considero-me um agnóstico, ou, explicando, alguém que não sabe se Deus existe, não se interessa em comprovar a existência dele e não aprecia explicações sobrenaturais para as coisas. Talvez eu pareça pedante (não é essa a intenção), mas é muito difícil para uma pessoa que tem um lado racional bem desenvolvido acreditar em algo que não possa ser visto, observado, sentido – como Deus. E é igualmente difícil seguir ditames de uma religião que nem sempre têm vinculação com a 'prática', com 'a vida lá fora' da igreja ou do templo.

    No filme holandês "A Excêntrica Família de Antônia", de 1996, o personagem Dedo Torto comenta, desencantado, que, para ele, uma pessoa de muita fé pensa de acordo com sua religião, e não de acordo com sua cabeça. Meus argumentos vão mais ou menos nessa direção. Acho que a fé, de certo modo, freia o pragmatismo. A Igreja Católica, por exemplo, continua, em pleno terceiro milênio, a pensar da mesma forma que pensava séculos atrás. Condena a liberação feminina, mesmo após as mulheres terem vencido inúmeras barreiras para firmarem-se na sociedade. Desaprova as pesquisas com células-tronco, ainda que estas sejam consideradas o futuro da medicina e representem esperança de cura para muita gente. Tem posição contrária ao divórcio, mesmo que duas pessoas vivam "infelizes para sempre" em um casamento mal-sucedido. Isso sem mencionar a vista grossa que o Vaticano fez em relação ao Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial (tema muito bem abordado no filme "Amém", de Costa-Gravas), e a postura de afronta em relação aos homossexuais e aos defensores do aborto. Venhamos e convenhamos: o mundo já andou, né? Não dá para pensar assim em pleno século 21. Para não ficar apenas aqui no ocidente, poderia mencionar também a religião muçulmana, que, na sua forma mais radical, leva seus fiéis a um nível de atraso e de fanatismo inacreditável.

    Recentemente, porém, a leitura de um texto do filósofo francês Edgar Morin fez-me pensar um pouco sobre minhas crenças religiosas. Ou, melhor dizendo, sobre a falta delas. No artigo, intitulado "O pensamento duplo" (capítulo do volume 3 de "O Método"), Morin afirma que os dois modos de conhecimento e de ação, o simbólico/mitológico/mágico (tratamento mágico dos objetos; relações analógicas entre eles) e o empírico/técnico/racional (isolamento e tratamento técnico das coisas), não são excludentes. O autor cita como exemplo os nossos ancestrais caçadores-coletores, que acompanhavam seus atos "empíricos/lógicos/racionais" (filósofo adora escrever difícil) de desenvolvimento das técnicas da pedra, do ouro e do metal com seus ritos, crenças, magias e mitos, transitando entre esses dois pensamentos complementares sem confundi-los.


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    "Temos uma necessidade imperiosa da correção empírica/lógica/racional de todas as nossas atividades mentais, mas necessitamos também da cobertura imaginária/simbólica que ajuda a tecer a realidade e constrói os mitos: 'We are such stuff as dreams are made on'", comenta Morin, citando uma fala da peça "A Tempestade", de Shakespeare. A interpretação que faço é a de que uma pessoa, por mais racional que seja, precisa ter seus mitos e crenças, para preencher lacunas que só a razão não preencheria. Isso é, literalmente, algo de se pensar. Na carona da citação de Morin, lembrei-me de outra obra de Shakespeare, "Hamlet", em que o célebre personagem-título diz: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia". Talvez haja mesmo.

    Um parêntese: percebo que a comunicação de massa procura, muitas vezes, apresentar essa idéia de conjunção entre o empirismo e o mitológico, principalmente na publicidade: "Lave suas roupas com o sabão em pó X e saiba por que ele deixa mais branco", "Faça um test-drive e veja por que esse carro é o melhor". Ao mesmo tempo em que constrói um mito, procura fazer o consumidor experimentar o produto para confirmar esse 'poder maravilhoso' que ele (o produto) tem. Tenta fazer o consumidor acreditar que pode aliar a sua racionalidade à crença que lhe é transmitida. Mas isso não acontece de forma plena, pois a publicidade apresenta o mito e também, ao mesmo tempo, o 'código' para decifrá-lo. "Dentes mais brancos – você os quer? Então use o creme dental Y". A resposta é dada juntamente com a pergunta. Trata-se de um caso interessante da relação entre o simbólico e o racional.

    A leitura de Edgar Morin não me convenceu por completo da necessidade de ter uma religião, mas motivou-me a, a partir de agora, prestar mais atenção às coisas do "invisível". E reforçou-me a idéia de que nós, comunicadores, devemos elaborar nossos produtos sem subestimar a inteligência do nosso público. Insistir no simbólico/mitológico sem levar em conta o empírico/racional nem sempre funciona, já que os dois andam saudavelmente juntos. Pelo menos é o que diz Morin.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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