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    Anotações


    É mesmo uma ingenuidade, além de um baita populismo, considerar que Machado de Assis pode ser mais lido pelos pouco instruídos se for “facilitado”. Embora a reescrita de clássicos em linguagem “acessível” seja uma prática comum em muitos países – quem já frequentou curso de idiomas provavelmente leu versões “intermediárias” de romances célebres –, a questão, no Brasil, é mais complicada: os analfabetos funcionais tão numerosos por aqui não entenderiam nem esse texto supostamente simples. E é esse o incômodo que deveria ser atacado com urgência, e com dinheiro público... O projeto da (re)escritora paulista ajuda muito pouco se o impasse de fundo – pelo qual a literatura não tem culpa – não for resolvido, ou ao menos muito abrandado. Depois, se quiserem adaptar Machado a um vocabulário mais corrente, para aproximá-lo dos leitores iniciantes, tudo bem. Na Pátria Amada, contudo, é assim: sempre se tenta remendar, em vez de combater a raiz do problema.

    Afora isso, levando a discussão para termos mais estritamente literários, o leitor de Machado sabe que ele não é, exatamente, um autor “difícil” de fruir. Uma das contribuições de Machado no campo formal, inclusive, foi o questionamento do modelo pomposo de prosa do Romantismo e a adoção de um estilo de escrita mais sucinto, direto e espirituoso. Os capítulos de seus romances são curtos, o narrador muitas vezes dialoga saborosamente com o leitor... O “difícil”, mesmo, é ver um professor de ensino médio usar essas qualidades para tentar seduzir seus alunos ao universo, e ao texto original, do gênio.

    (Mas claro que Luis Augusto Fischer aprova “100%” o projeto de simplificar Machado com dinheiro público, porque “democratiza”, blablablá. Bocejos.)

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    Escritor João Paulo Cuenca diz, no twitter, que o colega peruano Mario Vargas Llosa é “uma tia velha” já há muito tempo, devido às suas críticas ao empobrecimento cultural contemporâneo. Vargas Llosa pode mesmo, às vezes, exagerar no passadismo, mas que livro de Cuenca equipara-se a, por exemplo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”?...

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    De uma resenha do filme “Getúlio”, da Folha: “Antigamente, o perigo que o espectador de um filme brasileiro corria era o de ser submetido à idiossincrasia verborrágica do diretor, cuja autenticidade pretendia desculpar as carências da produção e o amadorismo do roteiro. Hoje o risco é oposto, pois o cinema se profissionalizou à custa de imitar o padrão televisivo – o didatismo rasteiro das novelas – e de vampirizar a audiência de suas celebridades.” Concordo com a descrição dos sintomas, mas o quadro clínico é parcial. A estética televisiva no cinema brasileiro não suplantou a, na falta de termo melhor, “experimental”. Existem as duas, e isso, no nosso caso, não é elogio. Filmes nacionais – por mais variados, em termos de gênero, que se esforcem para ser – têm-se dividido entre “filhos da tv” e “filhos de Glauber Rocha”, com os representantes de cada vertente a proclamar superioridade moral perante a outra. O espírito é de polarização, claro, como o encontrado em (quase) todo o cenário artístico nacional.

    Enquanto isso, os argentinos – nem todos, sei – seguem a produzir filmes de tramas densas, personagens multidimensionais e narrativas que, se não entregam tudo pronto ao espectador, também sabem comunicar-se com ele. São pouquíssimos os brasileiros que atingem tal equilíbrio. “Cara ou coroa” (2012), de Ugo Giorgetti, que vi recentemente, por pouco não atinge. Tem problemas de roteiro e atuações, como 95% do cinema nacional, mas, ambientado no período do regime militar, é um dos raros filmes ‘políticos’ feitos aqui com olhar mais nuançado, cético tanto para a ‘direita’ quanto para a ‘esquerda’, e mais empenhado em investigar como a política entra na vida dos personagens do que personagens que entram para a política. Continuem tentando.

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    De uma reportagem da extinta revista Manchete, de 12 de abril de 1986, sobre candidatos à Assembleia Nacional Constituinte, transcorrida entre 1987 e 1988: “Progressista, conservador, mais cristão, menos racista – que Brasil construiremos? Não é por acaso que os ‘fiscais do Sarney’ proliferam. O brasileiro, agora, quer influir diretamente nos destinos do país. Em vez de deixar em poucas mãos o direito de decidir o que é bom para o Brasil, ele agora quer saber o que pretendem fazer os seus representantes políticos.” Não lembra o pensamento que se cristalizou a respeito dos protestos de junho de 2013?... Sabemos o que aconteceu nos anos seguintes a esse contexto político referido pela revista: crise econômica profunda, desencanto com a democracia (porque a vida tinha piorado) e cinismo – caldo que alimentou o surgimento de um “salvador da pátria”, Collor, e mais crise.

    A História do Brasil cisma em se repetir. As raras mobilizações populares registradas aqui sempre motivam reações emocionadas e deslumbradas, que depois desmoronam frente à realidade que se impõe. Ouvi um filósofo dizer que 2013 representou uma tomada de consciência de que a democracia se faz no dia a dia. Isso é verdade, mas muito limitado. Basta observarmos o nível, ou a falta dele, das “discussões” políticas travadas pelo brasileiro médio para relativizarmos bastante a noção de que crescemos democraticamente: radicalismos, ofensas e incompreensão do que seja liberdade de expressão e imprensa existem por aqui numa dimensão não desprezível. É bom tomar cuidado com o deslumbramento. O Brasil sempre exige parcimônia.

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    Na última coluna, faltou contestar outro clichê, muito ouvido nos últimos meses: “Não concordo com o governo atual, mas isso não significa que estou com a oposição”. Está com quem, então? Não existe discordância a favor. Desaprovar o governo, mas votar pela continuidade dele, é uma total incoerência, além de denotar mesquinhez e despolitização – quem entende de política sabe que, às vezes, é preciso, na hora do voto, pensar menos em simpatias pessoais e mais no contexto político geral do país. Como escreveu Balzac, ter “o dom de contemplar as coisas com grandeza, de generalizar e deduzir”. Em toda democracia consistente, há alternância frequente de poder. Nos EUA, por exemplo, a questão é simples para o eleitor: não está satisfeito com os republicanos, então vota nos democratas, e vice-versa. Pode ser necessário fechar o nariz na hora de apertar as teclas da urna, mas é assim que se amadurece um país.

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