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    150 anos esta noite


    “Erik Satie era um homem inenarrável. (...) Mantinha uma excentricidade solene. (...) Egoísta, cruel, meticuloso, ele não escutava nada que não decorresse do seu dogma e ficava com uma raiva terrível do que o atrapalhasse. Egoísta, porque ele só pensava na sua música. Cruel, porque ele defendia a sua música. Meticuloso, porque ele aperfeiçoava a sua música. E a sua música era delicada. Ele também o era, à sua maneira”.

    As palavras do poeta e dramaturgo francês Jean Cocteau (1889-1963), extraídas de “A dificuldade de ser”, seu livro de memórias, referem-se ao artista que ele tinha por mestre, e de quem era amigo. Erik Satie, nascido há 150 anos, em 1866, e morto em 1925, é dono de uma obra que se tornou das mais admiradas e executadas da música de concerto (ou “erudita”, denominação inadequada, porque não é preciso ser um erudito para ouvir esse tipo de música), fato que ele, se vivesse hoje, provavelmente reprovaria, tendo em vista o grande zelo que mantinha sobre suas criações e o emprego delas, conforme atesta Cocteau. Mas isso quase não importa. Ser muito reproduzida não elimina a qualidade de uma produção artística. A de Satie, depois – e, em certos casos, apesar – de todos os usos feitos dela, permanece muito boa. E lindíssima.

    Muito peculiar, também. A música desse “homem inenarrável” carrega algumas características do Impressionismo, de que Debussy e Ravel são os maiores expoentes, porém transcende escolas. Dizê-la apenas uma precursora do chamado Minimalismo, devido ao despojamento e complexa simplicidade, igualmente não satisfaz. Satie era... Satie, por mais bobo que escrever isso pareça. E por ser tão pessoal e, ao mesmo tempo, universal, passível de interpretações várias, é que sua obra foi um achado para uma arte a que seu amigo Cocteau também se dedicou: o cinema, maior responsável pela disseminação das Trois Gymnopédies, de 1888, e Trois Gnossiennes, compostas por volta de 1890. Parte proeminente do trabalho de Satie, autor ainda de música para balé e experimentalismos importantes (“Vexations”, de 1893, fascinou John Cage), essas breves peças para piano já foram trilha sonora de filmes de toda parte do mundo, desde documentários até comédias. Alguns usos guardam pontos de contato com o universo do músico francês ou com o que as composições pretendem evocar; outros se dão em contexto muito distinto.


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    O jornalista e crítico Daniel Piza observou, certa vez, que Satie era “a tristeza pontilhada”. De fato, as três Gymnopédies caracterizam-se pela atmosfera melancólica e pela melodia econômica. A de número 1, a mais conhecida, é uma valsa feita quase só de notas semínimas, aquelas de duração de um segundo, e que se executa, de acordo com a instrução dada por Satie na partitura, de maneira “Lent et douloureux”, Lenta e dolorosa. Daí sua utilização em “Trinta anos esta noite”, de 1963, estar “aprovada”. O filme do grande diretor francês Louis Malle relaciona-se espiritualmente com Satie, ao processar questões existenciais e religiosas com que o músico também se ocupava (já veremos isso) e ao exalar melancolia. A presença da Gymnopédie n.1, ali, contribui para compreendermos o estado emocional do protagonista Alain (Maurice Ronet), um alcoolista suicida que expressa pensamentos como “Eu queria cativar as pessoas, me ligar a elas, mantê-las perto, para que tudo ao meu redor se acalmasse. Mas tudo sempre dá errado” (sim, estamos diante do cinema “existencialista” francês dos anos 1950/60). Numa sequência noturna, a música soa enquanto ele olha Paris, ensimesmado, através da janela de um ônibus. A trilha inteira do longa é satiniana: as Gnossiennes e as Gymnopédies 2 e 3 acompanham diversas outras cenas.

    Casamento perfeito de imagem e som acontece, de igual modo, em “O Equilibrista” (2008), de James Marsh, documentário sobre a proeza do francês (é claro) Philippe Petit, o homem que, em 7 de agosto de 1974, conseguiu atravessar de uma torre para outra do World Trade Center, sobre um cabo de aço, a 400 metros de altura. A narrativa parte do planejamento do funâmbulo para aquela manhã em Nova York, vai à explicação de como ele, ajudado por um amigo, burlou a segurança para instalar o cabo entre os terraços dos prédios e chega literalmente ao ápice com o momento exato da travessia, mostrado por fotos, tiradas de vários ângulos, a se sucederem na tela tendo a Gnossienne n.1 e, em especial, a Gymnopédie n.1 a tocar. A ação do equilibrista francês é, para repetir os adjetivos de Cocteau, meticulosa e delicada tal qual a música de seu conterrâneo. Ver Philippe lá no alto com uma vara de equilíbrio, em um dia nublado numa das maiores cidades do mundo, fica mais comovente com a trilha sonora. Refletimos sobre a beleza que o ser humano é capaz de criar – e a barbárie, pois é impossível não lembrar que o mesmo local foi alvo dos atentados de 2001, ainda que o episódio não seja citado no doc.

    Não-grandiloquência

    Há casos, no entanto, em que se ouve o trabalho de Satie em cenas com as quais ele nada ou pouco tem a ver. Com as Gnossiennes, em específico, isso já ocorreu. Pode dar liga, mas nem sempre. Um exemplo de combinação que, apesar de estranha, funciona está em “Fatal”, de 2008, adaptação fraca de Isabel Coixet para o romance “O animal agonizante”, de Philip Roth. A Gnossienne n.3 acompanha cenas de nudez e sexo dos personagens de Ben Kingsley, um professor culto, e Penelope Cruz, a aluna altiva por quem ele se vê obcecado. Embora não contenha uma carga erótica (muito pelo contrário), a música é bem-vinda ali, por outras razões. Vejamos.

    Satie, em atitude coerente com sua “excentricidade solene”, evitava formas tradicionais de peças para pianistas. Elaborou pouquíssimos prelúdios, noturnos e sonatas, aos quais dava títulos e rubricas geralmente inusitados e engraçados. Inventou, com as Trois Gnossiennes, um novo tipo de composição para piano, em que não há indicação de compasso, de marcação de tempo, apenas instruções de execução – a primeira é “Lent”, a segunda, “Avec étonnement” (“Com espanto”), e a terceira, de novo “Lent”. De poucas notas, sem floreios, só o essencial, cada uma constitui-se de uma singela ideia harmônica e melódica que vai sofrendo uma série de mudanças sutis, modelo deveras próximo ao que os minimalistas praticariam a partir dos anos 1960. Como tinha de ser, o compositor cunhou também o nome delas. Dizem analistas que Gnossienne vem de “gnosis”. Satie interessava-se por esoterismo, fez músicas para cerimônias da Ordem Rosa-Cruz e chegou a fundar uma seita (da qual foi o único adepto). Escute: as Gnossiennes realmente sugerem o místico, o “etéreo”. Em “Trinta anos esta noite”, a mesma Gnossienne n.3 que toca em “Fatal” roda numa cena de tédio e introspecção do protagonista, em que ele lê no jornal notícias de morte, essa desconhecida a que quer se entregar. Tem mais a ver com a obra satiniana que a cena de Coixet. Mas, em “Fatal”, o intimismo da Gnossienne n.3 contribui para o clima das ações que embala, ainda que não dialogue com as ações em si. Ademais, as cenas, feito o autor da música, igualmente transmitem o que querem com contenção de recursos: luz, atuação simples dos atores e trilha. A não-grandiloquência de Satie, inclusive, foi na sua época considerada pobreza musical por alguns colegas e críticos (nada como a perspectiva que o decurso do tempo confere...).

    Se, contudo, a utilização nas passagens sensuais de “Fatal” não é de todo descabida, o mesmo não se pode afirmar da bomba pretensiosa “Love”, de Gaspar Noé, longa mais recente (2015) a trazer Satie na trilha sonora, no caso uma versão orquestrada também da Gnossienne n.3. Tudo o que há para dizer sobre “Love” é que se trata de um filme em 3D que tenta investigar um triângulo amoroso algo doentio, porém só consegue ser um amontoado de cenas de sexo explícito, com a música densa como aparente tentativa de conferir profundidade a um ambiente tão raso. Melhor empregar o tempo assistindo a “Muito além do jardim” (1980), de Hal Ashby, comédia irônica, do tipo que Hollywood quase não produz mais, na qual ouvimos composições não exatamente de Satie, mas inspiradas nele. São dois temas de piano que o americano Johnny Mandel escreveu a partir das Gnossiennes 4 e 5, compostas pelo francês no mesmo período das Trois Gnossiennes, todavia publicadas, com as de número 6 e 7, somente em 1968. As releituras de Mandel respeitam o universo misterioso, esotérico, de Satie. Rodam em momentos de atmosfera enigmática, como moldura para o personagem de Peter Sellers, um jardineiro simplório, educado pelo que vê na TV, que, sem intenção, vira conselheiro político e celebridade nacional. Essa história de um grande mal-entendido se desenrola numa clave deliciosamente sutil, em economia de ferramentas e ações. Muito próximo de Satie.

    Em “Elisa, vida minha” (1977), de Carlos Saura, numa cena noturna de memória e introversão; em “A outra” (1988), de Woody Allen, numa cena de sonho, de inconsciente; em “As confissões de Schmidt” (2002), de Alexander Payne, numa sequência de viagem e reflexão... A relação de usos acurados das Gnossiennes e Gymnopédies em filmes poderia seguir. A presença forte delas no cinema é uma prova de que a música “erudita” está mais perto do nosso cotidiano e da cultura pop do que muitos imaginam (outra prova? Uso de Vivaldi e Mozart em comerciais, por exemplo) e que, é claro, a obra de Erik Satie é atemporal. Neste seu aniversário de 150 anos, ouvi-lo é estar numa ilha de sensibilidade e leveza em meio ao oceano de águas revoltas que atravessamos. Em filmes ou no que for, importante é que ele continue entre nós. Excêntrico, cruel, meticuloso e delicado.

    * Texto originalmente publicado na revista Continente Multicultural de dezembro de 2016.

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    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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