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    Direita-esquerda, esquerda-direita - parte 1: História


    Tente, leitor, acompanhar esta (nem tão) breve recapitulação histórica sem se perder:

    Em 1989, na primeira eleição direta no Brasil após o fim do regime militar, disputaram o segundo turno o “esquerdista” Luis Inácio Lula da Silva, do PT, reunião de sindicalistas e ex-guerrilheiros e militantes socialistas que combateram a ditadura, e o “direitista” Fernando Collor, de partido nanico. Collor se elegeu - e, em 1992, acusado de corrupção, sofreu um impeachment, defendido tanto por PT quanto por PSDB, legenda criada em 1988 por parlamentares da ala à esquerda do PMDB descontentes com o fisiologismo desse partido. Petistas e tucanos, porém, concorreram em lados opostos na eleição seguinte, a de 1994, com o PSDB saindo-se vencedor na figura de Fernando Henrique Cardoso. No poder, o partido mostrou-se centrista, orientado pela chamada Terceira Via, misto de socialdemocracia e liberalismo econômico. Além disso, aliou-se a oligarcas, personagens da direita como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney. O PT, na oposição, pintou o rival como inteiramente de direita (até para simplificar o debate), mesmo que FHC tivesse sido uma voz de esquerda contra a ditadura e, como senador, autor de um projeto de taxação de grandes fortunas. Em 2003, essa oposição aguerrida enfim chegou ao governo federal, com seu principal líder. Lula surgiu no cenário político no fim dos anos 1970 como sindicalista, um negociador de salários que não se preocupava com socialismo. Estimulado, contudo, por professores da USP e religiosos da Teologia da Libertação, foi aproximando-se da esquerda tradicional. Lula tocou um governo populista e, embora dividindo a política em “nós contra eles”, também se ligou à direita dos outrora arqui-inimigos Collor, Paulo Maluf e Renan Calheiros. Corrupção, prática das mais condenadas pelo PT quando na oposição, foi alçada pelo partido a patamares altíssimos, o que provocou a indignação popular que desembocou no segundo caso de impeachment da História brasileira, contra a afilhada de Lula, a também populista – num nível mais desastrado – Dilma Rousseff, que igualmente se aliara a quadros da direita para governar. Ufa! De enfado, não padecemos.

    Esse retrospecto esta aí para provar a complexidade (ou melhor, a bagunça) da política brasileira, a dificuldade de enquadrar nossos partidos e líderes nas categorias políticas conhecidas: esquerda, direita, liberalismo, conservadorismo, socialismo. Entretanto, o que se tem visto ultimamente, em especial nas discussões travadas nas redes (anti-)sociais e nas rodas de amigos, é um apego a rótulos fáceis, um embate entre o que o senso comum considera esquerda e direita, “comunistas” e “fascistas”, bonzinhos e malvados. Será que todo mundo sabe do que está falando? A resposta, claro, é um rotundo Não. A maioria das pelejas dá-se com base em noções esmaecidas, quando não em franca desinformação, amparada em mitos, o que é pior.


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    Pois o que são, afinal, esquerda e direita política? Quais são as principais ideias de cada vertente de pensamento? E as práticas que aprovam e os costumes que condenam são tão distintos assim? Para entender, é preciso recuar ainda mais no tempo, e em âmbito mundial.

    1º Round: século 18

    Diz o jornalista e cientista político americano Yuval Levin, no livro O Grande Debate (Ed. Record), recentemente traduzido no Brasil, que os conceitos de direita e esquerda têm raízes no debate de ideias ocorrido após a Revolução Francesa, o levante popular que derrubou a monarquia absolutista da França, em 1789. Na Convenção Nacional que pretendia redigir uma Constituição para a nascente República, dois partidos sentavam-se em lugares opostos no salão de reuniões: à esquerda, os jacobinos, representantes das classes menos favorecidas (trabalhadores, camponeses) e defensores de posições radicais; à direita, os girondinos, representantes da burguesia (comerciantes, industriais) e de índole mais moderada.

    Na Inglaterra, dois pensadores, Edmund Burke e Thomas Paine, debruçaram-se sobre o episódio e suas implicações, numa rica discussão via cartas e artigos. Burke expunha concepções afinadas com os girondinos. Crítico dos excessos da Revolução, desconfiava do radicalismo jacobino e pedia prudência e respeito às tradições, reformas cuidadosas, não começar tudo “do zero”. Já Paine alinhava-se aos jacobinos: apoiava ações radicais, “terra arrasada”, para se iniciar uma nova ordem política e social conforme o povo desejasse.

    O debate entre o “conservadorismo” de Burke e o “progressismo” de Paine é o marco central. O que se entende por direita e esquerda hoje, no mundo todo, deve-se a isso. Mas outros boxeadores e regras, claro, também foram entrando nesse ringue.

    2º Round: séculos 19 e 20

    Os anos oitocentos viram se abrir um flanco que segue em cena, com modificações, até hoje: o das ideologias anticapitalistas. Socialismo, comunismo e anarquismo foram formulados como alternativas ao que seus cultores julgavam como “exploração do homem pelo homem” e “injustiças sociais” causadas pelo capitalismo.

    O filósofo alemão Karl Marx elaborou o esquema do que seria uma sociedade igualitária (o  comunismo), na qual trabalhadores não seriam oprimidos por patrões e se aboliria a propriedade privada, com os meios de produção sendo coletivos. Para se chegar a esse estágio, ele e Friedrich Engels, no Manifesto Comunista (1848), propuseram a luta de classes: o operariado deveria afrontar a burguesia e fazer a revolução socialista.

    A teoria foi posta em prática no século 20. O caso mais saliente é a União Soviética, fundada em 1922 (em sequência à Revolução Russa de 1917) e, após 40 anos de “guerra fria” com os EUA capitalistas, dissolvida em 1991, imersa em crise econômica. Não houve regimes socialistas sem autoritarismo, censura e repressão a opositores – como outra trágica lembrança dos novecentos, os regimes de extrema direita, nazismo e fascismo, ambos de discurso bastante anticomunista.

    No campo do debate civilizado, o marxismo foi especialmente criticado por adeptos do liberalismo, ideário com origem em Adam Smith e John Locke, filósofos do Iluminismo do século 18. Liberais, com os economistas austríacos Ludwig Von Mises e Friedrich Hayek à frente, perceberam o marxismo como uma ideologia inviável, por prever uma economia planificada, estatizada. Para eles, um Estado muito controlador asfixia a criatividade e, por extensão, a produtividade humana. O principal valor não é a igualdade; é a liberdade individual, a capacidade do cidadão de trabalhar, adquirir bens, fazer escolhas e resolver os próprios problemas, sem intromissão estatal, mas sob o império das leis.

    E o pensamento conservador, “filho” de Burke? Seguiu na arena política, é claro, dividindo espaço na direita com o liberalismo. As correntes convergem no anticomunismo, mas divergem na eleição de um valor maior: para os liberais, liberdade; para os conservadores, como já citado, tradição.

    Com essa movimentação ideológica, durante o século 20 foram se cristalizando uma noção de “esquerda” como clamor por igualdade e desejo por ruptura da ordem estabelecida e uma noção de “direita” como clamor por liberdade e reforço da ordem e das instituições. Ecos ainda ouvidos de Paine e Burke.

    3º Round (and counting): século 21

    A briga, agora, se dá em bases diferentes. E mais confusas. A esquerda, como efeito da contracultura dos anos 1960/70 e do fim do comunismo, praticamente parou de falar em “revolução” e “interesses da classe trabalhadora” para então aproximar-se das chamadas políticas identitárias das minorias sociais - com um discurso de proteção a negros, LGBTs, mulheres, imigrantes - e insistir na formação de um “estado de bem-estar social”, com programas governamentais de amparo aos cidadãos considerados vulneráveis. A direita conservadora vai mais para o lado de uma valorização de instituições (família, religião) e comportamentos tradicionais, reprovando causas como aborto e casamento gay – que os liberais tendem a aceitar, no que se aproximam da... esquerda. Isso porque, para eles, o governo não deve intervir nem na economia, nem nos costumes. “O liberalismo é uma filosofia política baseada na liberdade por inteiro, e não pela metade, como querem direita e esquerda - cada uma a defender a liberdade de se fazer o que está de acordo somente com seus próprios valores”, diz o cientista político liberal Fabio Ostermann. O apoio às liberdades individuais (a de expressão é das mais exigidas) continua mesmo uma pauta forte dos liberais, ao lado da meritocracia, do empreendedorismo e do combate à corrupção e à burocracia estatal. Mas pensar assim, em 2018, é ser de direita? “Hoje, o enquadramento do ideário e da tradição liberais no campo da direita só pode ser feito por eliminação”, observa Fabio.

    O mundo girou. Em um eterno retorno nietzschiano, contudo, velhas questões que pareciam superadas dão jeito de ressurgir no embate. E há vezes em que esquerda exibe vícios de direita (ao fazer campanha eleitoral instilando medo de mudanças, por exemplo) e direita exibe vícios de esquerda (ao boicotar ações e espaços em que não se vê representada, por exemplo). Mesmo ainda fazendo algum sentido, essas categorias não são mais tão homogêneas quanto se pensa(va). É O Grande Debate, novamente, que nos diz: “Com frequência, o debate entre partidos de esquerda e direita ainda gira em torno dessas questões fundamentais [as apontadas por Burke e Paine no século 18]. (...) Mas os progressistas atuais estão muitas vezes engajados numa luta para preservar um conjunto de programas sociais que seus predecessores construíram no século passado (empregando argumentos que, na causa da preservação, soam claramente burkeanos). Enquanto isso, os conservadores buscam transformar algumas instituições governamentais (frequentemente recorrendo a argumentos dos princípios liberais clássicos que evocam Paine).”

    O embaralhamento não seria diferente no país da geleia geral indigesta. Comenta a historiadora Mary del Priore, autora de Histórias da Gente Brasileira (Ed. Leya): “Ideologias estão em crise no mundo todo. É difícil definir esquerda e direita, hoje. No Brasil, mais ainda, com as alianças políticas repugnantes feitas nos últimos anos. Vejo o debate empolgar mais os formadores de opinião, a imprensa, do que a maioria das pessoas. Já nos anos 80, em pesquisas de opinião, só 5% dos brasileiros se diziam interessados em política. Entrevistei muita gente para o quarto volume da minha tetralogia e notei um total desinteresse. Hoje os cidadãos querem é ver seus problemas resolvidos, não importa se pela direita ou pela esquerda.” Tudo é mais complicado do que parece, leitor? Bem-vindo à discussão intelectual, bem-vindo ao Brasil. E a luta continua.

    (Texto originalmente publicado na Revista da Cultura de novembro de 2017)

    *Na próxima coluna, as linhas gerais do pensamento de autores que fundamentam as concepções de direita e esquerda.


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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