[Leia também a parte 1: História e a parte 2: Autores]
1. “Apoiar casamento gay e descriminalização da maconha é ser de esquerda”
Eis uma meia-verdade. A direita liberal clássica também é a favor das duas causas, por ter como valor maior a liberdade individual. Nos Estados Unidos, não só o Partido Democrata, alinhado à esquerda, defende-as: uma ala do Partido Republicano (sim, o de Donald Trump), a ala dos Libertários, também, pois crê que o Estado, assim como na economia, não deve intervir em costumes – as pessoas são livres para consumir o que quiserem e casar com quem quiserem. Aliás, os EUA, país demonizado pela esquerda radical, estão descriminalizando uso de maconha aos poucos, Estado a Estado, e já legalizaram a união de pessoas do mesmo sexo. É uma caricatura associar direita a homofobia. Na Inglaterra, o Partido Conservador aprovou uma avançada lei de casamento gay, em 2013. Tal direito não existia na extinta União Soviética. Na China, homossexuais foram perseguidos durante a Revolução Cultural (1966-1968), período em que jovens militantes comunistas, a Guarda Vermelha, queriam banir qualquer símbolo ou ideia “reacionários”, contrários aos do líder Mao Tsétung. Cuba, uma ditadura socialista desde 1960, não só não admite casamento entre gays como também já os perseguiu muito (hoje, há mais liberdade, e o anteprojeto da nova Constituição, aprovado em julho último, contempla a união homoafetiva). Em 2016, o escritor Pedro Juan Gutiérrez lançou Fabián e o Caos, romance que aborda a forte perseguição dos anos 1960-70, quando foram criados até centros de “reeducação” para gays. Outro escritor cubano, Reinaldo Arenas, foi preso por ser gay e de oposição – como conta o filme Antes do Anoitecer, de 2000. E era notória a antipatia de Che Guevara, ídolo da esquerda latino-americana, por homossexuais.
2. “A direita não pensa nos pobres”
Claro que pensa, só que, naturalmente, de maneira diferente da esquerda. Cada lado tem um projeto econômico distinto para reduzir a pobreza. A direita liberal recomenda que um governo dê condições para os pobres saírem dessa condição pelas próprias pernas, não por ajuda direta na forma de programas de transferência de renda - receita da esquerda. O caminho é cortar impostos (a fim de fazer a economia andar e os empresários gerarem empregos), investir em educação e incentivar o empreendedorismo, tudo sem, em momento algum, relaxar na responsabilidade fiscal. “Deve-se criar um ambiente social e econômico no qual as pessoas poderão fazer sua parte e tomar conta de seus destinos. O governo deve oferecer as condições básicas para que as sociedades possam crescer e prosperar”, disse Kris Mauren, produtor do documentário liberal Pobreza S.A. (2014), em entrevista ao Estadão. Funciona mais ou menos assim: esquerda – “pobres devem ser amparados pelo Estado”; direita – “pobres devem ser estimulados a subir na vida por esforço próprio”.
Os países nórdicos (como Noruega, Suécia, Finlândia) têm economias liberais e conseguiram alcançar bastante igualdade social. A China, em 1980, tinha 88% da população em pobreza extrema. Após fazer reformas e abrir seu mercado aos investimentos externos (ideia liberal), viu seu crescimento econômico disparar e o nível de pobreza cair para 1,8% (dado de 2013). No Brasil, foram liberais como o economista Ricardo Paes de Barros que idealizaram o programa Bolsa Família. As coisas não são preto e branco.
3. “É de esquerda? Vai pra Cuba!”
Depende de que esquerda se está falando. A latino-americana realmente admira o regime castrista; a europeia, na maior parte, não, por causa da falta de democracia na ilha. Nem todo esquerdista é comunista e nem todo comunista é autoritário. A revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, por exemplo, condenava o autoritarismo instaurado pelos bolcheviques após a Revolução Russa. Era antiautoritária, embora não exatamente antiviolência. Sua frase famosa: “A liberdade é quase sempre a liberdade de quem discorda de nós.”
4. “É de direita? Então adora regime militar!”
Também depende. No Brasil, apenas o setor mais retrógrado da direita, o setor militarista, defende a ditadura de 1964-85. O setor liberal não, até porque prega diminuição do tamanho do Estado, e a ditadura foi estatizante.
5. “Não sou de esquerda, nem de direita; sou anarquista”
O anarquismo surgiu, no século 19, como uma ideologia contrária ao capitalismo; portanto, tem raízes na esquerda. Pleiteava a organização cooperativa dos cidadãos, sem um centro de decisões definido, isto é, sem um poder para mandar nas pessoas – o Estado, para os anarquistas “originais”, estava a serviço do capitalismo. Logo, quem se diz anarquista por não ter lado está, sem querer, adotando um lado. Melhor dizer-se independente, cético, isento...
6. “Privatizar empresas públicas é coisa de direita”
Não é bem assim. O campo liberal é, deveras, afeito à ideia de reduzir ao mínimo a existência de estatais, mas isso não significa que governos de esquerda não privatizem também. Nas décadas de 1980 e 1990, na Espanha, o governo do socialista Felipe González autorizou a venda de dezenas de estatais deficitárias, entre essas Textil Tarazona, Secoinsa (informática), Marsans (agência de viagens) e Pamesa (indústria de papel). O primeiro-ministro socialista da Áustria, no mesmo período, igualmente vendeu empresas mantidas pelo governo. Nos anos 1990, no Brasil, o deputado Fernando Gabeira apoiou a privatização do setor de telefonia, tão criticada por seu partido na época, o PT. Em 2000, a então prefeita eleita de São Paulo, Marta Suplicy, também um celebrado nome petista de outrora, declarou: “não tenho urticária em relação a privatização”. Outro petista histórico, Antônio Palocci, hoje preso na Lava-Jato, foi além das declarações: de fato privatizou a companhia de telefonia de Ribeirão Preto, durante seu mandato como prefeito da cidade. Ou seja: quando a situação aperta e é preciso deixar a máquina pública mais leve ou fazer caixa, até a esquerda começa a considerar privatização algo não tão abominável assim...
7. “Fundar estatais para tudo é coisa de esquerda”
Nem sempre. Assim como existe direita que defende redução do tamanho do Estado, existe direita estatista. Foi o caso da ditadura militar brasileira, que abriu nada menos que 47 estatais, entre as quais Telebrás e Embratel, privatizadas no governo FHC. A ditadura também foi modelo de gastança de dinheiro público, com obras “faraônicas”, das quais a rodovia Transamazônica é o maior (e mais triste) exemplo.
8. “Pena de morte é só coisa de países reacionários”
Outro engano. Havia pena capital em países do antigo bloco socialista no leste europeu. Uma maneira de saber disso é pelo filme Não Matarás, história pesadíssima sobre um condenado à morte na Varsóvia do período comunista, dirigido em 1988 pelo grande cineasta polonês Krzysztof Kieslowski.
9. “A direita defende a sacralidade da vida”
Realmente, a fatia conservadora da direita é contra descriminalizar aborto e eutanásia, sob o argumento de que toda pessoa tem o direito de nascer e de defender e preservar a própria vida. Mas como explicar a posição favorável à pena de morte e ao porte quase irrestrito de armas?
10. “Sou feminista, sou de esquerda”
Tal correlação não é assim tão automática. As ideias que foram dando forma ao que se convencionou chamar de Esquerda nem sempre foram um paraíso para as demandas femininas. O filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778), por exemplo, foi um dos pais do pensamento de esquerda (anti-elite, crente na qualidade e bondade intrínsecas dos menos favorecidos) e, homem de seu tempo, era machista. Segundo matéria da revista The New Yorker publicada em agosto de 2016, Rousseau via as mulheres como “especialmente criadas para satisfazer os homens”; elas deveriam “agradá-los em vez de irritá-los”.
Em Cuba, mulheres são proibidas de praticar esportes como boxe. E nem é preciso lembrar as várias declarações machistas já feitas por presidentes de esquerda latino-americanos.
No campo liberal, o direito ao aborto, uma das principais reivindicações feministas, encontra amparo. Os liberais clássicos sustentam que manter ou não uma gravidez é uma decisão de foro íntimo na qual um governo não deve se intrometer. Esse discurso não ressoa no campo conservador, mas mesmo nele há quem advogue por demandas das mulheres. Nos EUA, a ex-candidata a vice-presidente Sarah Palin, integrante do Tea Party, braço ultraconservador do Partido Republicano, diz ser uma “feminista conservadora” e participa de um grupo chamado Feminists for Life, que é contrário ao aborto, porém defensor do direito das mulheres a ter uma carreira e uma família, sem precisar optar entre uma coisa e outra.
11. “O Nazismo foi de esquerda porque o termo significa Nacional Socialismo”
Essa polêmica estéril invadiu as redes sociais depois da marcha de supremacistas brancos e neonazistas na Virginia, EUA, em agosto de 2017. Parafraseando a observação de Sigmund Freud sobre o hábito de fumar charutos, às vezes um nome é só um nome: embora os regimes nazista e comunista, ambos brutais, tenham tido características em comum – estatismo, ditadura, perseguição e assassinato de opositores – e Adolf Hitler atacasse também burgueses e banqueiros (muitos eram judeus) e tenha por um tempo se aliado a Josef Stalin, o movimento alemão não era próximo do ideário socialista de coletivização dos meios de produção e eliminação de classes sociais. Pelo contrário: o discurso nazista era bastante anticomunista. Não se pode afirmar que tenha raízes no campo da esquerda. Comunistas propunham a revolução do sistema; fascistas, um reforço na “ordem”. Tanto ideologias de esquerda quanto de direita podem descambar para regimes totalitários.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).