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    Cinema à moda da casa - 1989/2016


    Que falta faz Paulo Francis. Não sou, felizmente, o único a dizer isso, mas é preciso reforçar. Embora, por vezes, ele exagerasse nas avaliações e no tom em que as emitia, a maioria de seus artigos e comentários culturais e políticos era de uma erudição, destemor e ironia que não se veem mais hoje na imprensa. E de acertos, também. Francis morreu em 1997 legando escritos que ainda valem muito. É o caso do texto “Cinema à moda da casa”, publicado na Folha de S.Paulo em 18/6/1989 e republicado na coletânea “Paulo Francis: Diário da Corte”, lançada em 2012.

    O artigo traça um retrato sem photoshop do cinema daqui. Já na primeira linha, Francis dispara: “O mal do cinema brasileiro é que ninguém sabe fazer cinema no Brasil”. Adiante, diz que a maior parte da produção que conseguia dar dinheiro (Trapalhões, Mazzaropi & cia.) não é o que se poderia chamar “sétima arte” (ambição intelectual somada a resultado estético) e que nunca um filme brasileiro, fora os de Glauber Rocha, despertou grande interesse, mesmo no público mais culto – e culpar a “máquina da Globo” por isso é limitado. Reprova a “falta de realismo crítico”, os personagens caricatos e o domínio de “populismo demagógico” e “mulheres nuas”. Estranha o patrocínio estatal, então via Embrafilme, para projetos que fracassam, sem deixar de sugerir que possam existir “mamatas” nessa relação, e aponta o “clube do elogio mútuo” no meio como obstáculo a um arranque artístico no nosso cinema, o qual, conclui, só poderá ser salvo pelo imprevisível.

    O tempo passou... e, como tudo no Brasil, pouca coisa mudou. Talvez Francis se surpreendesse, hoje, com o fato de haver filmes brasileiros bastante vistos e debatidos pelo “público em geral”, em especial tramas de violência urbana como os “Tropa de elite”, e de quase todos apresentarem um nível técnico (áudio, iluminação) bem superior ao do passado (lembra quando os próprios atores tinham que se dublar porque os microfones eram péssimos?). Muito do que ele diz no texto, porém, segue atual, ou mudou mas manteve a essência, a exemplo do uso de dinheiro público, agora via Leis de Incentivo. É importante discutir essas leis, que parecem mesmo servir mais para mal acostumar o setor do que para fazê-lo se desenvolver esteticamente, mas isso daria outro texto. A ênfase aqui é nos demais defeitos que Francis encontrou no cinema nacional e que perduram: amadorismo, esquematismo e populismo.


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    Roteiro fraco, personagens planos e demagogia política são, de fato, sintomas de não saber “fazer cinema”, ou, vá lá, de fazer insuficiente. Tudo começa com ideia de personagem e trama, e, se o começo é precário, o fim geralmente o é também. Tomemos os dois últimos longas escolhidos para representar o Brasil na disputa pelo Oscar de Filme Estrangeiro: “Hoje eu quero voltar sozinho”, de Daniel Ribeiro, em 2014, e “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, em 2015. Francis não gostaria deles.

    No primeiro, adolescente cego se apaixona pelo novo colega de classe e é correspondido, provocando ciúme na melhor amiga. Trata-se de um filme, em tempos em que o cinema nacional se divide em neochanchadas e histórias “de favela”, que merece ser visto, pela temática pouco presente. O problema é que, mesmo distinto do atualmente comum, “Hoje” sofre das principais deficiências de sempre do cinema brasileiro. A debilidade do roteiro aparece em certos clichês e facilidades (até aquele de alguém bater na porta num instante decisivo), e o estereótipo nos personagens se nota não no protagonista, que é um bom menino, inteligente e tranquilo, mas, quando quer, mente para os pais e mostra o dedo médio a quem o perturba – nota-se nos que o rodeiam. Vemos a mãe superpreocupada, a amiga confidente, os colegas que fazem bullying, a colega saidinha. Tipos assim não existem na “vida real”? Existem, claro. Mas por que Ribeiro não se preocupou em entendê-los também, em mostrar motivações para suas condutas, brevemente que fosse? E por que, do outro lado, seus personagens gays precisavam ser totalmente bem resolvidos e amantes de música de concerto e livros? Nenhum gay, na realidade, fica “no armário” ou gosta de cantoras pop e videogame?... Os do filme parecem não ter dúvidas, conflitos internos. O Félix daquela novela era mais interessante.

    Os diálogos declamados também cansam. Um personagem solta a fala toda, depois o outro solta a fala toda, depois o outro... Não há, como na vida, hesitações ou falas cortadas ou sobrepostas. Soam inverossímeis. Já disse o escritor Sérgio Rodrigues que “Diálogos costumam ter velocidade mais próxima do pingue-pongue que do xadrez”.

    A crítica, contudo, praticamente só viu qualidades em “Hoje”, assim como em “Que horas ela volta?”, outro filme vítima (a palavra é essa) de quase unanimidade. Um comentarista de um jornal gaúcho chegou a adjetivar de “fundamental” a história da moça nordestina que, para prestar vestibular em São Paulo, hospeda-se com a mãe, empregada de uma casa de classe alta. A maioria dos resenhistas, sempre contaminada por ideologia, ainda que sem perceber, considerou-a um belo retrato da ascensão social registrada nos anos Lula. Até onde li, em portais de jornais, só Inácio Araujo e Sérgio Alpendre, da Folha, identificaram defeitos, principalmente o maniqueísmo “de esquerda” nos personagens. E com toda a razão: num simplismo digno de dramalhão mexicano, a empregada e a filha, personagens “pobres”, são fortes e determinadas, e os donos da casa, gente dazelite, são mesquinhos e apáticos. A moça, aliás, não cumpre o arquétipo que lhe quiseram imprimir e, em vez de altiva e contestadora, só consegue ser arrogante e desrespeitosa. Seus “antagonistas” também não saem muito da caricatura. A patroa, ao saber da intenção dela de entrar na USP, fala “o país tá mudando mesmo, né?” – o que torna Muylaert quase uma redatora de programa eleitoral do PT –, mas não tarda em antipatizar e conspirar contra a jovem. Tenta, inclusive, impedi-la de se aproximar do filho. De novo, as perguntas se impõem: por que a diretora não se interessou em investigar os personagens ricos também? Não têm razões para agir como agem? O ser humano só tem um lado?

    A narrativa igualmente traz um incômodo grave: previsibilidade. Logo adivinhamos que a moça vai passar no vestibular e o menino rico, não; que, no fim, mãe e filha começarão a se dar bem... Dão-se tão bem, por sinal, que a jovem, quando sabe que a mãe, após se demitir, roubou louças da patroa, não condena o ato. Até ri. E tudo fica em paz. Para quem tinha tanta virtude, um senso de justiça tão apurado... A cena dá a sensação de que, antes dos créditos finais, surgirá na tela uma paráfrase de Rousseau: “o brasileiro é bom, a elite que o corrompe”.

    Certa vez, em conversa com um professor de cinema, expus que considerava bons roteiros e ambiguidade dramática as principais carências do cinema nacional, e ele concordou, relatando um episódio. Para testar seus alunos, perguntou quem deles conhecia as reflexões sobre cinema do autor fulano. A maioria levantou a mão. Perguntou também quem já tinha lido o manual de roteiro do autor beltrano, aquele básico. Boa parte levantou. Perguntou, por fim, quem já tinha lido Machado de Assis. Dois ou três levantaram... Eis o problema: a falta de cultura narrativa e de observação sutil e cética do ser humano pela maior parte de nossos cineastas, o que os torna meros ecoantes do senso comum. Quem não pensa com a própria cabeça pensa com a dos outros.

    Em 1993, em um programa Manhattan Connection, Francis afirmou, com o humor e a provocação habituais, que cinema brasileiro era só “aquela morena desajeitada sendo sodomizada por aquele moreno desajeitado e infantilidades sobre justiça social”. A primeira parte, hoje, está ultrapassada: cenas de sexo gratuitas ainda aparecem, mas menos que na produção de décadas atrás. A segunda, contudo, persiste. Não são poucos os filmes que, em pleno século 21, exalam um marxismo pedestre, como sabe quem tem o Canal Brasil no pacote de TV por assinatura. Para não ir muito longe, lembro, além de “Que horas ela volta?”, dois outros quase panfletos de há pouco: “Casa grande” (2015), de Felipe Barbosa, e “O som ao redor” (2012), de Kleber Mendonça Filho. Se vivesse hoje, Francis talvez repetisse, ao vê-los, outro comentário certeiro sobre cinema nacional, de outra coluna de 1989: “Nenhum filme brasileiro dá certo porque todos os cineastas tentam demagogicamente se colocar na posição dos humildes. É falso, visceralmente. Os humildes não se sentem como a esquerda festiva imagina que se sintam (...). Sempre que vejo um favelado de filme brasileiro tenho vontade de sair gritando: É um santo! É um santo!”. Em arte, apresentar ideologia rasa, em vez de ideias profundas, é deveras um problema.

    Em “Cinema à moda da casa”, Francis abre exceção apenas para o argentino-brasileiro Hector Babenco, que foi mesmo um diretor de alma ampla e poucas concessões emotivas. Há outros casos aqui e ali. Recentemente, elogiou-se muito “O lobo atrás da porta” (2014), de Fernando Coimbra, mas “Cara ou coroa” (2012), de Ugo Giorgetti, merecia mais atenção do que recebeu. Ainda que com falhas de roteiro e atuações, é uma boa história que, se não entrega tudo pronto ao espectador, também sabe comunicar-se com ele. Raro filme “político” feito aqui – é ambientado no período da ditadura – com olhar nuançado e crítico, tanto para a direita quanto para a esquerda, empenha-se mais em estudar como a política entra na vida dos personagens do que personagens que entram numa onda política.

    Essas, porém, são as exceções que confirmam a regra. O caminho a ser percorrido pelo cinema brasileiro ainda é longo. E apelar para coitadismo (“a culpa é dos blockbusters e da TV, que nos roubam público”), fazer pouco do cinema dos vizinhos argentinos, bem mais satisfatório em todos os quesitos, e contar histórias medianas ou semipanfletárias com a certeza de financiamento da Rouanet não são atitudes que ajudam. Visão mais complexa e humildade, no sentido de reconhecer que ainda há muito o que aprender, sim, ajudariam. A ficha tem que cair – inclusive para os críticos atuais, já que Paulo Francis não está mais entre nós para ver o que outros não veem. Nenhuma arte evolui com um debate pobre e um nível de exigência tão baixo. Essa moda da casa já deveria ter passado.

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    @lucas_colombo


    lucas colombo assinaturaLucas Colombo

    Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).


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