Chega um momento na vida de todo homem em que ele se pergunta se deve ou não falar o que pensa. É o velho dilema hamletiano que surge assim do nada e que sempre resulta em carnificina, por mais metafórica que ela seja. Com todo mundo afetando indignação por causa do incêndio no Museu Nacional e, pior, com tanta gente incapaz de interpretar um texto, me parece que escrever qualquer coisa que destoe da histeria é loucura. Assim, neste momento em que concluo o parágrafo me pergunto: por que eu cometeria a estupidez de escrever o que penso? Mas escrevo. Porque, assim como Hamlet, tem horas em que piro e também opto por ser.
Pois o Museu Nacional pegou fogo. E está todo mundo procurando culpados – que é mais ou menos como procurar palha num palheiro. Houve até abraço simbólico de uns otários que, certamente, jamais entraram no museu enquanto ele estava de pé (a rigor ainda está, eu sei). Nos telejornais dos últimos dois dias, fui bombardeado com um zilhão de números e documentos e testemunhos que tentam me convencer de que a tragédia (sempre essa palavra) poderia ter sido evitada.
O que diz muito sobre o país. Se – sempre se. Se Pedro Álvares Cabral não tivesse descoberto o Brasil. Se os pernambucanos não tivessem expulsado Nassau. Se Deodoro não tivesse derrubado a Monarquia. Se as sirenes tivessem soado naquela enchente em Petrópolis ou no estouro da barragem em Mariana. Se as pessoas não tivessem invadido o prédio que pegou fogo e desabou. Se o Zico tivesse feito aquele pênalti em 1986. Se, se, se. Sempre se. Se sobre se. O Brasil é um país que se percebe um fracasso somente quando está deitado num berço esplêndido, forrado por hipóteses inúteis.
Conjunções subjuntivas não servem para outra coisa que não alimentar certo masoquismo, inclusive político, que parece ser traço característico da nossa brasilidade (isto é, para quem acredita nisso e no Boitatá). É sempre a mesma história: o leite derramado evapora ou talha (ou o gato é mais rápido do que você e lambe tudo) e ninguém jamais pensa em tirar do acidente (ou tragédia) uma lição capaz de perdurar por mais de uma semana. O que, em se tratando de um museu, chega a ser bastante irônico.
Mas, cara, peças de valor incalculável (sempre o mesmo advérbio) foram perdidas! O crânio da moça lá que viveu há treze séculos. Gravações de cantos indígenas em idiomas que não existem mais. Pinturas, fotos. Móveis do tempo do Império, umas almofadas assim tão bonitas. Sem falar nas múmias. Como é que você consegue levantar da cama, se olhar no espelho e ter a cara-de-pau de abrir o computador para escrever um texto intitulado “Foda-se o Museu Nacional”?
Aí é que está. Se eu fosse uma pessoa normal, algo que nunca afirmei ser, entraria para o coro dos indignados. Babaria o fel mais azedo do mundo diante da falta de gestão, da falta de um sistema contra incêndio, da falta de água nos hidrantes. Usaria mil pontos-de-exclamação na esperança de me fazer ouvido. E os dias passariam e eu continuaria usando o incêndio no Museu Nacional como a metáfora mais perfeita (perfeita porque abrangente) para quaisquer mazelas nacionais que o Jornal Nacional ecoasse.
Mas não sou uma pessoa normal – o que não quer dizer que eu seja uma pessoa necessariamente melhor (nem pior). Só estou aqui no meio da sala vazia, assistindo a mais um debate sobre o Museu Nacional e todos os “ses” que o envolvem, e pensando que o brasileiro (não o povo; o indivíduo) (ah, e o indivíduo esclarecido, não o tiozinho indignado da esquina) está perdendo mais uma oportunidade de constatar o óbvio: nada é perene, nem a história.
Claro que o impropério que dá título a este texto é uma provocação (e, se você chegou até aqui, uma provocação bem-sucedida). Museus são importantes em qualquer sociedade minimamente civilizada – e até no Piauí. E, sim, até aquele trambolho horrendo que é o Museu do Amanhã deve ter lá sua importância. A questão não é a relevância do acervo deste ou daquele museu, nem tampouco a vontade de um monarca qualquer, o prédio histórico, o crânio da Luzia, os registros etnográficos da tribo Biriri-bororó.
A questão é que passamos e desaparecemos. Depois nossa memória se perde e os tetos que um dia nos protegeram desmoronam. Na melhor das hipóteses, aquilo que um dia fomos vira múmia a ser exposta num palácio que o fogo (ou a água, o vento, ou até mesmo um parente distante do Meteorito de Bendegó) haverá de consumir. E tudo aquilo que consideramos insubstituível um dia se revelará, aos olhos futuros, simplesmente um luxo (do conhecimento, do intelecto). O Museu Nacional foi desses luxos.
Supere.
Paulo Polzonoff Jr.
Jornalista, crítico literário, tradutor e escritor, autor de "Manuel Bandeira" (2006) e "O Homem que Matou Luiz Inácio" (e-book, 2016).