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    De médico e louco...


    *Para o Especial Machado de Assis

    O Alienista” é um dos mais extensos contos de Machado de Assis e um dos textos que melhor retrata a veia irônica do autor. É certo que o discurso irônico permeia toda a obra machadiana, mas, no “Alienista”, a ironia é usada como um pincel forte, com o qual o autor-narrador vai desenhando os traços que acabam por fazer de Simão Bacamarte um personagem risível, ‘vítima’ de um cientificismo ingênuo e inócuo.

    Em uma das seis conferências Norton que proferiu na Universidade de Harvard, em Cambridge, o teórico italiano Umberto Eco disse que “(...) Quando entramos no bosque da ficção, temos de assinar um acordo ficcional com o autor e estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come a Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). Imaginamos o lobo peludo e com orelhas pontudas, mais ou menos como os lobos que encontramos nos bosques de verdade, e achamos muito natural que Chapeuzinho Vermelho se comporte como uma menina e sua mãe como uma adulta preocupada e responsável. Por quê? Porque isso é o que acontece no mundo de nossa experiência (...), o mundo real”.


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    Não há dúvida de que é esse acordo ficcional que garante ao leitor do conto de Machado de Assis a bizarra esperança de que os ímpetos científicos do alienista – a despeito da Ciência, que é “coisa séria, e merece ser tratada com seriedade” – serão freados. Há, portanto, em Machado, uma centelha de piedade com seus leitores, um sentimento que o deixa mais à vontade para cometer pequenas torturas como o fato do personagem Simão Bacamarte não mostrar nenhum conhecimento – a não ser o empírico – a respeito da Loucura. E é exatamente com esse sentimento que mistura piedade, sarcasmo e muito humor que o autor realista vai construindo sua crítica a um mundo que se mostrava rendido pelos encantos da Ciência.

    É preciso notar aqui que o tema da Loucura – essa senhora desvairada e sedutora – é recorrente na obra machadiana. Kátia Muricy, por exemplo, no livro “A razão cética”, apontou “Quincas Borba” (um dos romances da fase madura de Machado de Assis) como ‘o mais desencantado romance’ do autor. E justificou: “A começar pelo título, que nomeia não mais o filósofo do humanitismo, o singular amigo de Brás Cubas, mas o seu comovente cão. Mais acertadamente, nomeia a lembrança do filósofo, indica o que restou de sua vida, o seu legado: Rubião e Quincas Borba, o cão. Para um, as idéias só irão se arranjar em cadeias delirantes; para outro, elas são menos que ‘poeira de idéias’. O legado de Quincas Borba é essa ausência de razão, na sandice ou na irracionalidade”.

    É claro que a loucura, como tema, é tratada de forma diferente no conto e no romance acima citado. Em “Quincas Borba”, Rubião se refugia na loucura por encontrar resistências no novo mundo que a herança e a Corte do Rio de Janeiro lhe descortinavam. Era um anacrônico, um deslocado. Em “O Alienista”, porém, a loucura – ou o estudo dela – é antes de tudo uma arma com a qual Simão Bacamarte cresce aos olhos da sociedade. Uma sociedade ainda deslumbrada pelo poder e pela fama. Aqui, anacrônicos e deslocados são os que não compreendem a árdua tarefa com a qual se imbuiu o médico: descobrir, classificar e curar, com a ajuda da Ciência, a insanidade dos homens.

    E é exatamente pela mobilidade com a qual se movem as demais personagens do “Alienista” que Machado vai construindo sua feroz crítica à sociedade. Uma sociedade movida por interesses mesquinhos – como no caso do boticário Crispim Soares, ou do barbeiro Porfírio. Considerado por muito críticos como o mais importante autor realista brasileiro, Machado de Assis não poupou nem mesmo a corrente na qual se inseria. Sim, pois não seria também “O Alienista” uma crítica ao cientificismo tão em voga na ficção do Realismo brasileiro? Antes de qualquer resposta, importa notar que Machado utiliza-se da incessante busca pela ‘verdade científica’ como uma forma de criticar àqueles que encontravam na Ciência o álibi para toda e qualquer atitude. Ainda que sem razão.

    Assim, chegamos ao projeto da Casa Verde. E no ambicioso tratado sobre a Loucura, de Simão Bacamarte. É aqui que se encerra a crítica machadiana: quem são os loucos? O que é a loucura? Se a Ciência é a resposta para muitas indagações humanas, vale aqui lembrar que nem sempre o homem sabe como percorrer o caminho das respostas. A personagem de Simão Bacamarte surge como uma síntese que mostra a impotência, ou a arrogância (?), do homem que se apropria das leis da Ciência e que, em nome delas, comete equívocos, promove tragédias e injustiças.

    Desde os primórdios da humanidade, a loucura, assim como o amor e o ódio, é uma sombra que espreita o homem. Tema fascinante, ela alimenta a irascível fúria enciumada de Orfeu ou os delírios cavalheirescos de Dom Quixote. Foi seguindo os seus passos, que Van Gogh decepou a própria orelha. E foi graças a ela que se encontrou a justificativa para encerrar num sanatório a escultora Camille Claudel. No mundo real ou na ficção, a loucura se faz presente. E se nos românticos ela surgia como uma das alternativas trágicas (assim como o álcool, o degredo e a morte) que encerrava o destino de personagens que se mantinham fiéis a sentimentos nobres, no realismo machadiano a loucura vai surgir como uma força estranha ao homem confrontado com uma realidade – econômica e comercial – que o coloca em xeque diante de suas certezas.

    A História mostra que, para todo adágio popular, há uma situação primeira que o justifica. E se é verdade que a loucura nos espreita, talvez encontremos na tosca figura do alienista Simão Bacamarte a explicação para a sabedoria popular que até hoje diz que ‘de médico e louco, todos nós temos um pouco’. Viva Machado de Assis!

    *Vássia Silveira é jornalista e escritora. Texto originalmente publicado no site Jornal de Poesia.


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