Buenos Aires, a cidade do tango, viu surgir grandes artistas. Foi lá que nasceu, por exemplo, o escritor Jorge Luis Borges. Foi, também, nos palcos da capital argentina que o compositor Astor Piazzolla mostrou-se ao mundo, para o bem da música e para irritação dos puristas. O legado de figuras de peso como essas, no entanto, não é tudo o que Buenos Aires oferece, no campo da cultura, a seus moradores ou visitantes. Espalhados pelas ruas portenhas, misturados à bela arquitetura de inspiração européia, estão alguns espaços privilegiados para as artes visuais. No bairro da Recoleta, localiza-se o Museu Nacional de Belas Artes, com 32 salas e onze mil peças, entre escultura e pintura. Há obras de Van Gogh, Monet, Kandinsky, Modigliani e outros grandes nomes. No bairro Palermo, fica o Museu de Artes Plásticas Eduardo Sívori, que abriga uma volumosa coleção de pinturas, desenhos, gravuras e tapeçarias. E no Retiro, no último piso das Galerías Pacífico, funciona o Centro Cultural Borges, que, além de expor permanentemente fotografias e objetos do escritor, também realiza mostras de artistas reconhecidos em âmbito internacional.
Na atualidade, porém, a grande atração do circuito de museus de Buenos Aires é o Malba – Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires. Inaugurado em setembro de 2001, o Malba é considerado um dos maiores museus privados do mundo (os portenhos dizem que é o maior). O espaço realiza exposições temporárias, conferências e ciclos de cinema, mas seu principal chamariz é a exposição permanente “Arte latinoamericano siglo XX”, que apresenta o acervo particular do colecionador Eduardo Costantini, fundador do museu. São 140 obras de grandes artistas latino-americanos do século 20 – do brasileiro Cândido Portinari ao uruguaio Joaquín Torres-García, do mexicano Diego Rivera ao argentino Antonio Berni. A mostra percorre desde os inícios do século passado – período que corresponde ao chamado Modernismo – até a contemporaneidade, contemplando obras da Argentina, Uruguai, Brasil, Chile, Venezuela, México, Colômbia, Equador e Cuba.
Classificadas em quatro núcleos – anos 1920; anos 1930 e 1940; 1940 e 1950; e 1960 e 1970 –, as pinturas, esculturas, colagens, fotografias e gravuras da exposição enchem os olhos das pessoas de várias partes do mundo que visitam o museu. No dia em que esta reportagem foi feita, ouvia-se gente falando inglês, alemão, português, espanhol. O caos, porém, é apenas nesse sentido. As obras da coleção de Costantini estão muito bem organizadas, no térreo e no segundo piso. O ambiente é tranqüilo, com um aspecto clean e elegante.
“O que seria aquela coisa?”
Uma senhora argentina passa e arregala os olhos. Outra, alemã, dá uma risadinha, aproxima-se, lê as informações sobre a tela à sua frente e exclama, para as duas pessoas que a acompanham: “braziliana!”. A imagem que chama atenção é o “Abaporu”, célebre pintura da brasileira (ou braziliana, como preferir) Tarsila do Amaral (1886-1973). Ocupando lugar de destaque na exposição – ao entrar na sala da mostra, logo se vê o quadro –, a obra é uma das mais importantes da seção dedicada às vanguardas latino-americanas dos anos 1920.
Feito há exatos 80 anos (em 1928), “Abaporu” foi responsável por uma revolução na arte brasileira. Tarsila o pintara para dar de presente ao seu marido na época, o escritor Oswald de Andrade. Ele, ao ver o quadro, entusiasmou-se e, então, deu origem ao Movimento Antropofágico, com que propunha “deglutir” a cultura e as técnicas artísticas estrangeiras, para devolvê-las com identidade nacional. Abaporu, palavra criada por Tarsila, significa “homem antropófago”, em tupi-guarani (aba: homem; puru: que come carne humana). Além de apresentar traços surrealistas e evidenciar a preocupação de Tarsila com a estilização do desenho, a obra reproduz elementos (estereotipadamente) brasileiros, como o sol, a mata e o céu muito azul. O pé grande da figura representa a intensa ligação do homem com a terra.
"Abaporu" (1928), de Tarsila do Amaral (Imagem: arqa.com)
(Fonte: MIS-SP)
A ida do “Abaporu” para a Argentina, aliás, foi repleta de polêmica. Em 1995, o governo de São Paulo tentou impedir a venda do quadro para Costantini, que o adquiriu por 1 milhão e trezentos mil dólares (na época, com a paridade cambial, também 1 milhão e trezentos mil reais), num leilão em Nova York. Sem sucesso. A mais alta quantia até então paga por uma tela brasileira levou o “Abaporu” para Buenos Aires, sob protestos generalizados da classe artística do Brasil. Quase 13 anos depois, o fato de um dos maiores ícones da nossa arte estar em outro país ainda não é bem assimilado por alguns brasileiros que vão ao Museu. A jornalista carioca Cecília Gurjão, que estava conferindo a mostra, protestou: “Fico um pouco revoltada, sim. Acho que o Abaporu deveria ficar no Brasil, não em outro país”, disse.
Celeumas à parte, o quadro contribui para tornar a seção dedicada aos Anos 1920 uma das mais interessantes da mostra. O texto explicativo da seção, impresso numa das paredes da sala, frisa o caráter renovador dos artistas expostos, indicando que eles se rebelaram contra o que era tradicional na arte de seus países. Segundo o texto, o Movimento Antropofágico brasileiro é um bom exemplo das vanguardas surgidas na América Latina, nas primeiras décadas do século 20. Tal movimento foi uma das conseqüências da Semana de Arte Moderna, evento que, em 1922, abalou as estruturas da arte produzida no Brasil. Tarsila do Amaral, inclusive, ao contrário do que muitos acreditam, não participou da Semana. Na Europa, onde estava, ela recebeu uma carta de Anita Malfatti, em que a também pintora comentava a movimentação. Curiosa, Tarsila perguntou-se: “O que seria aquela coisa?”. Voltou, então, ao Brasil e engajou-se na frente modernista.
“Cores de Frida Kahlo, cores...”
O verso de “Esquadros”, canção de Adriana Calcanhotto, refere-se às cores fortes, vibrantes, dos quadros da mexicana Frida Kahlo (1907-1954), outra gigante da arte latino-americana presente no Malba. A tela “Auto-retrato com macaco e papagaio”, criada em 1942, marca o núcleo “Anos 30 e 40: surrealismos, arte e política”. Trata-se de um dos inúmeros auto-retratos que Frida produziu. A artista comentou, certa vez, que pintava a si mesma por ser a pessoa que ela melhor conhecia. No Museu, a reação do público é de fascínio. “Não sabia que um dos auto-retratos de Frida estava aqui”, disse uma norte-americana da Califórnia. “Ela é fantástica”.
A vida conturbada de Frida se refletiu em seus quadros, em que imperam imagens fortes e traços intensos. Quando jovem, a artista sofreu um acidente de trem, que deixou seqüelas por toda a sua vida. Tinha dificuldades para andar, sentia dores terríveis e sofreu abortos. Mesmo assim, sua existência foi agitada: freqüentava festas, foi militante comunista e teve vários amores – entre eles Diego Rivera, com quem foi casada. Frida sofria com as sucessivas traições do marido, às quais, na maioria das vezes, revidava. Essa história foi levada às telas de cinema em 2003, no filme “Frida”, de Julie Taymor, com a atriz Salma Hayek no papel da artista.
Forçando as fronteiras da pintura
Na seção voltada aos anos 1940 e 1950 – “Propostas concretas, construtivas e abstratas” –, outro brasileiro é destaque: Hélio Oiticica (1937-1980). Estão expostas três obras da série “Metaesquema”, elaboradas pelo artista carioca em 1958. De inspiração concreta, cada quadro traz uma combinação de quadrados e retângulos, de uma única cor – verde, preto, azul. As imagens criam jogos ópticos para o espectador, proporcionando uma ilusão de movimento. “Hélio Oiticica força as fronteiras da pintura” – diz o texto explicativo da seção.
Oiticica pintou a série no início de sua carreira e, depois, a rejeitou. Motivo: seu teor concretista. Após participar de exposições de arte concreta, o pintor rompeu com o movimento, por considerá-lo racional demais. Juntou-se, então, ao Grupo Neoconcreto, fundado pelo poeta Ferreira Gullar e pela escultora e pintora Lygia Clark. Foi quando Oiticica tornou-se um dos principais nomes da arte experimental brasileira da segunda metade do século 20, ao criar obras como os Parangolés, com que estimulava a participação direta do público.
Viúvos, trepantes e bichos
O estilo do pintor e escultor colombiano Fernando Botero é inconfundível. Com influências do Renascimento italiano, ele destaca em suas telas figuras rechonchudas, como se pode verificar em “Os viúvos”, parte do núcleo “Anos 60 e 70 – Nova figuração, arte pop, minimalismo e arte conceitual”. O quadro é enorme: 190,5 x 195,5. Criado em 1968, “Os viúvos” é a imagem de uma família cuja mãe morrera. O pai “posa” com as filhas, com o retrato da mulher morta ao fundo.
Como nas obras do Renascimento, “Os viúvos” pode ser observada sob o ponto de vista de sua composição clássica e, também, em termos ‘humanos’. É clássica, porque tem cores sóbrias e personagens enigmáticos, e é ‘humana’, porque o pai parece estar assumindo seu ‘posto’ de grande responsável pela família, depois da morte da esposa.
Igualmente comparece ao núcleo reservado aos anos 1960 e 1970 a brasileira Lygia Clark - expoente da arte neoconcreta, conforme citado acima. Estão lá o “Trepante”, escultura de aço inoxidável feita em 1965, e, numa redoma, três exemplares da série “Bichos”, de 1960. Esses são esculturas constituídas por segmentos de alumínio, articulados por dobradiças, que o espectador pode manipular. Lygia (1920-1988), aliás, foi uma das primeiras artistas brasileiras a criar obras para provocar a participação do público. Em 2005, alguns de seus “Bichos” foram soltos – ou melhor, expostos – na 5ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre.
O argentino León Ferrari também aparece nessa seção, com um trabalho provocador, bem ao gosto dele. Confeccionado em plástico, óleo e gesso, “A civilização ocidental e cristã”, de 1966, traz um Jesus Cristo ‘crucificado’ nas asas de um avião bombardeiro da Força Aérea dos Estados Unidos. Pendurada por fios, de modo que o ‘avião’ realmente pareça estar caindo e, nessa posição, assemelhe-se a uma cruz, “A civilização...” causa impacto e chama bastante a atenção de quem passa pelo núcleo Anos 1960 e 1970.
E o espetáculo da arte latino-americana não se encerra por aí. O Malba possui, ainda, obras do mexicano Miguel Covarrubias, do uruguaio Pedro Fidari, do cubano Wifredo Lam, do chileno Roberto Matta, dos argentinos Emilio Pettoruti e Alejandro Xul Solar e dos brasileiros Emiliano Di Cavalcanti, Abraham Palatnik e Nelson Leirner, entre muitos outros. As exposições temporárias também são uma atração do Museu. Quando esta reportagem foi feita, estava em curso a mostra “Aquisições, doações e comodatos”, apenas com obras recém-adquiridas pelo Malba. Entre essas, algumas de forte caráter político, como “Bota la basura en la basura” (“Ponha o lixo no lixo”), do grupo peruano Sociedad Civil, de Lima, ativo desde 2000. O trabalho apresenta fotografias do ex-presidente Alberto Fujimori e de seu assessor Vladimiro Montesinos com roupas de presidiário, impressas em sacos de lixo. Para quem não lembra, Fujimori fechou o Congresso peruano em 1992, e Montesinos foi filmado comprando um político da oposição, em 2000. “Bota la basura en la basura” foi uma ação do grupo. Os integrantes distribuíram 35 mil dessas sacolas de lixo, em Lima.
O rico acervo de Eduardo Costantini constitui-se num panorama da arte produzida na América Latina, no último século. Visitar o Malba é deparar-se com a originalidade, criatividade e intensidade dos artistas da região. Um museu com grandes obras artísticas latino-americanas combina com Buenos Aires, uma das maiores metrópoles da América Latina. Malba e Buenos Aires se complementam, numa relação de alto nível estético.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).