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    Se 2012 foi um ano de fatos auspiciosos para o Brasil – tantos políticos corruptos condenados? Quem diria –, também teve na morte de grandes nomes da cultura e da imprensa alguns de seus eventos mais lamentáveis. É impossível não incorrer no clichê de que “ficamos menos inteligentes” com os falecimentos de Millôr Fernandes, em março, e Ivan Lessa, em junho, dois representantes de um tipo cada vez mais raro, por aqui, de jornalismo: o que lança um olhar refinado mesmo sobre os temas mais triviais e busca provocar perspectivas no leitor. Eles se foram, justamente, numa temporada em que se lembrava de dois outros incríveis jornalistas e escritores: Paulo Francis, por ocasião dos 15 anos de morte, e Nelson Rodrigues, pelo centenário de nascimento. E isso tudo enquanto a falta de Daniel Piza, morto no penúltimo dia de 2011, quando era um desses hoje raros jornalistas densos e provocativos, consistia algo a ser dificilmente digerido.

    Piza (com quem este que vos escreve conversava, com orgulho), aliás, foi amigo de Francis e muito influenciado por ele e Millôr. Apreciava a versatilidade e o humor de ambos e o fato de emitirem suas opiniões com vigor, coloquialismo e liberdade. Quanto a Nelson, considerava-o ótimo cronista esportivo e, de longe, nosso maior dramaturgo, criador de personagens e situações dos quais “brotam os dilemas morais de qualquer ser humano”, como escreveu. Por sinal, a cultura brasileira dos anos 1950, da qual Francis, Millôr e Nelson são expoentes, interessava-o muito. Piza chegou a dizer que, um dia, ainda faria um livro sobre aquele período da vida intelectual nacional, “quando o Brasil, com o atraso costumeiro, viveu sua modernidade”. O tempo foi mesmo fervente: construção de Brasília, surgimento da bossa nova e da poesia concreta, publicação do “Grande Sertão” de Guimarães Rosa, boas revistas culturais e críticos como Otto Maria Carpeaux e José Lino Grünewald, gestação do cinema novo, sociedade a debater ideias... e Francis, Millôr e Nelson a produzir muito. Três das maiores cabeças que o Brasil já gerou, porém, não só compartilharam uma época rica. Têm trabalhos e vidas que se aproxima(ra)m em vários outros aspectos.

    Nelson nasceu em 1912, em Recife; Millôr, em 1924, no Rio de Janeiro; e Francis, em 1930, também no Rio. Têm, portanto, uns anos de diferença, mas, naqueles tempos de ebulição cultural/intelectual, cujo epicentro era, naturalmente, o Rio, então capital, eles estavam lá, colaborando para tal ambiente, cada um à sua maneira. Nelson, após inovar o teatro nacional com peças como “Vestido de noiva” e “Doroteia”, nos anos 1940, continuava a escrever dramaturgia e tocava a coluna “A vida como ela é”, no jornal Última Hora, para fascínio e escândalo dos leitores. Francis redigia críticas eruditas e impiedosas de teatro e editava a Senhor, revista que, com uma mistura deliciosa de crítica cultural, reportagens, humor e inéditos literários, se tornaria um marco da imprensa cultural brasileira. Millôr, por sua vez, desenhava, elaborava suas primeiras peças (como se vê, ligações com o teatro, que vivia fase de peso na cultura, também unem o trio) e assinava, em O Cruzeiro, a moderna seção de humor Pif Paf. Na revista, foi colega de Nelson, de quem virou amigo.


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    O livro “Millôr definitivo – A bíblia do caos” (L&PM, 2007), reunião de mais de cinco mil frases e comentários seus sobre todos os assuntos que se possa imaginar (“Diáspora”? Está lá), traz uma nota do autor revelando ‘intervenções’ em “Meu destino é pecar”, folhetim que Nelson criou em 1944, sob o pseudônimo Suzana Flag, para O Jornal, do mesmo grupo de O Cruzeiro. Diz Millôr que, na Redação, “era brincadeira usual minha introduzir trechos enquanto Nelson falava ao telefone. Quando ele voltava, lia o trecho introduzido, ria surdo – ah, ah! – e continuava dali mesmo.” Um ano antes, Millôr assistiu ao lado de Nelson à estreia de “Vestido de noiva”, que o amigo lhe dedicara. Ao fazer uma observação à peça, ouviu dele: “É claro que você achou genial. E não me venha com pequenas restrições.”

    Sweet prince

    Crítica é, inclusive, o principal elo entre Nelson e Francis. Este igualmente foi muito amigo de Millôr e dizia ter conhecido bem Nelson, mas não teve com ele relação forte. Eram de gerações e posições políticas diferentes. Quando foi crítico teatral, Francis atravessava seu período “de esquerda”, enquanto que Nelson, politicamente, sempre foi conservador.

    Em “Paulo Francis: Brasil na cabeça” (Relume Dumará, 2004), sua biografia compacta do amigo, Daniel Piza conta que, ao tratar de “Perdoa-me por me traíres”, em 1957, Francis reprovou o hábito de Nelson de reagir às vaias do público, ao final do espetáculo. Ao que o dramaturgo retrucou, no mesmo ano, em “Viúva, porém honesta”, com o personagem Dorothy Dalton, gay e covarde, em que buscava encarnar o “crítico da nova geração”. Francis, conforme Piza, não se sentiu pessoalmente satirizado.

    Piza ressalta ainda, no livro, que Francis foi um crítico teatral arguto, mas que, é claro, cometeu erros, como ao avaliar a obra de Nelson. Ele admirava seu diálogo coloquial, fácil de falar, e o “impacto cênico” de suas situações humanas. No olhar dele da época, todavia, pensava que o autor “ainda tinha o que acrescentar” e o queria mais politizado e intelectualizado – mais ou menos o que expôs em “Nelson nunca foi um intelectual”, texto redigido após a morte desse, em dezembro de 1980, e presente na coletânea “Diário da Corte” (Três Estrelas, org. Nelson de Sá), lançada em abril último. Francis só foi reconhecer plenamente o valor do teatro rodrigueano bem depois. Numa coluna de 1990, afirmou que “Doroteia”, “Álbum de família” e “Senhora dos afogados” são “pura poesia teatral”, que Nelson sabe “do que é sexualmente inconsciente e irresistível” e, “se escrevesse numa língua mais divulgada”, teria morrido rico e famoso e “faria parte dos repertórios das grandes companhias”.

    Nelson propiciou uma lufada de ar fresco ao teatro, e Francis e Millôr, no fim da década de 1960, à imprensa. Então em O Pasquim, que ajudaram a criar, os dois levaram ao ápice o viés modernizante de suas experiências profissionais anteriores (linguagem mais direta e coloquial, olhar mais internacionalizado) e, assim, renovaram o jornalismo do Bananão – para citar termo de Ivan Lessa, colega deles no semanário. A informalidade d’O Pasquim permitia mostras de admiração e amizade (até muito) frequentes. Em 1970, Millôr tascou: “O Paulo Francis é um bípede implume insuportavelmente sapiens.” Um ano depois, Francis mudou-se aos EUA, mas os laços seguiram. Numa coluna, em 1990, assinalou que Millôr “não é para todos os gostos. É picante, amargo, requer cabeça para entendê-lo”; e em outra dirigiu-lhe quase o mesmo comentário dirigido a Nelson: “Millôr, se não escrevesse numa língua de periferia, seria considerado um dos melhores humoristas do mundo.

    Quando Francis morreu, em fevereiro de 1997, um dos melhores obituários foi de Millôr. Escreveu ele que, por trás da postura esnobe do amigo, havia uma alma afável e até carente. E que reagia à sua veemência como crítico com, of course, Shakespeare, de quem é um dos maiores tradutores brasileiros: “Diante de alguns de seus acessos – comigo jamais demasiados – eu zombava, parodiando, comicamente, o Horácio final do Hamlet: ‘Dá-lhe, sweet prince!’”. Ainda naquele mês, Millôr, em entrevista, voltou a destacar a contundência de Francis, alguém “capaz de expressar suas opiniões sem medo e, às vezes, até exageradamente”.

    Provocações

    Tal franqueza de opiniões é traço marcante dos três, não só de Francis. Nem é preciso enfatizar aqui suas capacidades polêmicas, já tão reconhecidas. Francis, Millôr e Nelson eram hábeis em (salutarmente) contrariar o senso comum. O primeiro foi trotskista quando a maioria era “de direita” e virou “neoliberal” quando a moda era a “esquerda”. Nessa fase, cunhou frases que deixavam (ainda deixam) os “politicamente corretos” furibundos, como “Quando ouço falar em ecologia, saco logo meu talão de cheques”, ou “A melhor propaganda anticomunista é deixar os comunistas falarem”. Nelson, é claro, não ficava atrás em acidez e talento aforístico: “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”. Millôr manteve-se, a vida toda, crítico de ideologias de qualquer ordem. “Pensamento deve ser livre, e ideologia bitola o pensamento. Quem se diz um ‘pensador marxista’ não é pensador”, disse numa entrevista.

    Com os jovens, o trio também era reticente. Francis: “A juventude de hoje pensa que inventou alguma coisa. E inventou. Alardear o que faz. Só.” O comentário é de 1988, mas serve à Geração Facebook. Para essa, que julga “velho” tudo que tem mais de 30 anos, Millôr igualmente teria recado: “Sou jovem há muito mais tempo do que qualquer desses rapazinhos que andam por aí”. Mais sucinto foi Nelson, solicitado a dizer algo aos moços: “Envelheçam!”.

    E o Brasil? Ah, a Pátria Amada esteve sempre na mira dos três... Eles se aproximam, também, na aptidão em revelar o Brasil e o brasileiro. Nelson, embora ufanista, talvez seja, ao lado de Machado de Assis, o escritor que mais descortinou o país; sua ficção expõe os desejos reprimidos, as frustrações e a hipocrisia que há por baixo do manto da nossa “alegria”, nossa “convivência em paz” (o brasileiro é alegre e pacífico, sim, mas chegará a algum lugar só sendo isso?). Millôr e Francis eram explicitamente críticos. Mesmo tendo acreditado no país quando jovem e trotskista, Francis passou a maturidade inteira a apontar para nosso atraso, nosso nacionalismo besta, nossas pobrezas culturais. Em “Trinta anos esta noite” (Cia. das Letras, 1994), suas memórias do golpe de 1964, disparou: “O Brasil é um asilo de lunáticos onde os pacientes assumiram o controle”. Já Millôr precisou de apenas oito palavras para expressar nossos contrastes: “Brasil, filme pornô com trilha de bossa nova”.

    A agudeza desses gênios faz falta. Pena que o livro sobre os anos 1950, no qual certamente abordaria os trabalhos deles, é uma das coisas sem que Daniel Piza nos deixou. Ficamos também sem sua coluna dominical, que lembrava o “Diário da Corte” de Francis, e as citações certeiras de Millôr e Nelson que sempre fazia. Neste 2012, teria escrito mais uma vez sobre o amigo Francis e lastimado muito as mortes de Millôr e de Ivan, até porque saberia que não há reposições à altura. O próprio Francis, nos últimos anos de vida, criticava muito o “nivelamento por baixo” da imprensa, que não ousava mais “desagradar o leitor”. Millôr também era cético quanto ao jornalismo atual: “Outro dia, uma repórter me ligou para saber o que eu andava lendo. Almanaque Capivarol, respondi. Ela pediu para soletrar!”. Com essas ausências todas, fica ainda mais difícil de suportar uma época assim.

    * Texto originalmente publicado na revista Continente Multicultural de dezembro de 2012.

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