Em uma das cenas finais do fundamental As Invasões Bárbaras (2003), filme do quase sempre interessante diretor canadense Denys Arcand, o filho do personagem principal, logo após a morte do pai, leva à casa do velho a amiga que o ajudou a cuidar dele. A moça vê, na estante do escritório, as lombadas de livros como o Diário de Samuel Pepys, Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn, e É Isto Um Homem?, de Primo Levi. Essas seriam as leituras que teriam feito aquele pensador e professor universitário canadense ter se transformado, do jovem deslumbrado com utopias políticas e os rumos da humanidade ao senhor mais cético dos últimos anos de vida. Pepys, que narra a própria ascensão, movida por competência e agudeza intelectual, no poder público inglês do século 18, deve tê-lo ajudado a perceber o valor do mérito sobre o compadrio e a incompetência da política em “melhorar” o ser humano. E os livros de memórias de Soljenítsyn e Levi devem tê-lo convencido dos horrores produzidos pelas ideologias de massa, à esquerda e à direita, no século 20, às quais tantos intelectuais aderiram para depois, decepcionados, abandonar (os que continuam atrelados a elas até hoje, no 20o ano do século 21, talvez consistam num caso clínico). Linda e reflexiva cena.
Bem poderia aparecer nela também outro título de Levi, A Trégua, espécie de continuação de É Isto Um Homem?. Este, porém, sem dúvida é o trabalho do químico e escritor italiano que mais impressionou e impressiona. É Isto Um Homem? foi publicado discretamente no final de 1947, por uma pequena editora italiana, mas só em 1958, com uma edição ampliada, que o livro “aconteceu”. É uma das grandes obras memorialísticas sobre o Holocausto – acompanham-no A Noite, de Elie Wiesel, e o recentemente lançado A Bailarina de Auschwitz, de Edith Eva Eger. Primo Levi nasceu há 100 anos, em julho de 1919, e morreu em abril de 1987, em circunstâncias nunca de todo elucidadas. Sofreu uma queda do terceiro andar no vão da escadaria do prédio onde morava, em Turim. A polícia falou em suicídio (Do terceiro andar? Sem bilhete?). Mas há biógrafos que afirmam ter sido uma queda acidental, e somos tentados a acreditar que, realmente, um sobrevivente de uma das tragédias mais tenebrosas da História jamais se mataria.
Judeu, Levi lutou na Segunda Guerra como partisan (guerrilheiro da resistência) e, preso pela milícia fascista, foi entregue aos nazistas, que o deportaram para Auschwitz, na Polônia ocupada, em 1944. Não foi morto de imediato na câmara de gás por ser aquele um período em que as “seleções”, no eufemismo do campo de extermínio, perderam frequência e ele, por “sorte”, como diz, começou a trabalhar no laboratório local. No livro, que escreveu em 1946, pouco depois de libertado, narra em detalhes o seu cotidiano como o Häftling (prisioneiro comum) de “nome” 174.517 (“levaremos até a morte essa marca tatuada no braço esquerdo”): como era dormir e acordar, resistir ao frio e à angústia, recorrer a escambos e furtos para se obter um pouco mais de comida, sofrer humilhações e castigos dos guardas e burocratas e, até, presenciar raríssimas demonstrações de gentileza e (algum) respeito, as quais o faziam se lembrar de “uma remota possibilidade de bem pela qual valia a pena conservar-se”.
Levi conta ainda dos jovens e velhos que foi conhecendo no Campo, cada um a representar um aspecto do processo de desumanização pelo qual passavam (“Tudo já lhe é tão indiferente, que não tenta fugir ao trabalho e às pancadas; nem procurar comida. Executa todas as ordens que recebe; é provável que, quando for enviado à morte, ele vá com essa mesma absoluta indiferença”), e no capítulo final, especialmente pesado, descreve as agonias e mortes de presos doentes que ele e amigos tentavam assistir, nos dias de espera de janeiro de 1945 em que os russos já se aproximavam da região de Auschwitz e os alemães abandonavam o Campo. Somente três dos 600 judeus deportados com Levi sobreviveram. É possível a alguém com tais memórias não ser sentimental ao relatá-las? Ele não foi. Expõe toda aquela situação degradante sem dramalhão para quem a viveu ou ressentimento contra quem a perpetrou – o que não significa, é claro, que busca justificar os crimes ou igualar vítimas e algozes. Não se vê isso em trecho algum.
Próprio do humano - Além dessas características, devidamente comentadas desde 1958, também impacta e comove a carga reflexiva de É Isto Um Homem?. Levi tenta entender a lógica, se é que havia uma, por trás daquela loucura e exprime o que ocorrências e condutas que presenciou lhe fizeram concluir acerca da condição humana. Pensamos, lendo, no ser humano Levi, um indivíduo que conseguiu raciocinar mesmo diante da barbárie, manter a capacidade meditativa mesmo quando tudo era selvageria e incivilidade.
O autor nos leva a pensar junto que, por exemplo, o ser humano nunca atinge a plenitude, seja no sentido positivo ou no negativo, pois a certeza da morte “fixa um limite a cada alegria, mas também a cada tristeza”; as inevitáveis lides cotidianas podem corroer a nossa felicidade, mas também nos distraem da ideia da morte, tornando-a suportável e evitando que entremos em desespero. O ser humano adapta-se a toda situação, mesmo às piores, o que é ao mesmo tempo assustador e admirável. No entanto, alguém que perde tudo - casa, roupas, hábitos -, como os presos do Campo, muitas vezes perde também a si mesmo, afinal nós somos nós e as nossas circunstâncias, na observação de Ortega y Gasset (citação minha), e coisas que consumimos, guardamos e praticamos fazem parte do barro que nos molda e sustenta.
A discussão, entretanto, em que Levi mais se detém é a moral. Ele convida o leitor a pensar sobre a eterna questão: É possível ser ético, respeitar “leis interiores”, em uma situação de extremos perigo e precariedade? Ser moral onde não há moral? “A lei do Campo mandava: ‘Come teu pão e, se puderes, o do vizinho’, e não havia lugar para a gratidão”, recorda. Conta, no capítulo Os Submersos e Os Salvos, casos de judeus que se salvaram com expedientes astuciosos e duvidosos e cometendo “infrações” éticas (eles também podiam se tornar funcionários do Campo, e vários se submeteram a isso). Qual é o caminho: ser honesto e morrer, ser desonesto e viver, tentar ser honesto e viver, ou ser desonesto porque sabe que vai morrer? Não existe resposta fácil e definitiva, e Levi, consciente disso, não dá nenhuma.
A igualmente humana habilidade de fazer referências, relações com coisas do passado, também aparece. Levi associa um guarda do caminhão que os levou até o Campo ao barqueiro Caronte, personagem que conduz os danados para o Inferno em A Divina Comédia, de Dante, e relembra a vez em que citou o “canto de Ulisses” da mesma obra para um francês culto, da idade dele, que pedira, enquanto carregavam um panelão de sopa pelo Campo, que lhe ensinasse a falar italiano (“Relembrai vossa origem, vossa essência;/ vós não fostes criados para bichos,/ e sim para o valor e a experiência.”). Pois é: nem mesmo experimentar “dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem” pode apagar a cultura que uma pessoa carrega, o apreço por tudo de belo e inteligente que a humanidade (também) já fez. A memória é indestrutível. É, para o bem ou para o mal, o que nada ou ninguém nos tira.
Primo Levi e seu livro são perfeitos documentos da complexidade da natureza humana e da capacidade intelectual do ser humano, aquelas faculdades que nos distinguem dos outros animais: a memória, o pensamento e a capacidade de expressá-los. Nos lembramos dele no centenário de nascimento, em 2019, e também lembramos agora, nos 75 anos da libertação de Auschwitz. Mas lembremos mais vezes, e reflitamos. Isso nos faz humanos. É isto um homem. Ainda, e apesar de tudo.
* Texto originalmente publicado no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo, em 25 de janeiro de 2020.
Lucas Colombo
Jornalista, professor, colaborador de revistas e cadernos de cultura, editor do Mínimo Múltiplo, organizador do livro "Os Melhores Textos do Mínimo Múltiplo" (Bartlebee, 2014).