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    Jambolão


    O outono voltou mais uma vez. Eu sei disso porque não há mais jambolão emporcalhando as calçadas com tinta roxa e cheiro forte. As latarias dos carros dos motoristas desatentos, que só querem uma sombrinha, estão salvas. O fato é que tem árvores demais dessa fruta na cidade. Os pássaros não dão conta. Ou, talvez, nem gostem. Provavelmente, preferem butiá e pitanga.

    Dizem que chá de jambolão é bom para diabetes. Sua tinta tenebrosa pode ser usada em roupas. Há até lendas hindus que citam-no. Um colega de trabalho disse que o caldo dá uma boa chimia. Tem uma avó que faz. "E se deixar curtir na cachaça?", perguntei. Disso ele não sabia. "É que butiá e pitanga sentam bem com cachaça", insisti. Ele também não sabia nada sobre isso. Não gostava de cachaça. Já uma amiga, para minha absoluta surpresa, nunca tinha reparado. Levei-a até um pé. Provou. Achou bom. "Mas é travoso", advertiu. "Se é travoso, é ruim", impliquei.

    Lembrei disso enquanto admirava o resquício de uma mancha de jambolão no pátio, no chão de cimento queimado, enquanto meu tio e meu primo discutiam. Eles estavam muito compenetrados, em uma busca frenética por argumentos e ter razão. Era como se eu não estivesse ali. De certa forma, eu não estava mesmo. Divagava sobre o jambolão. E eles seguiam. O que motivou a rusga foi a denúncia de uma professora que estaria doutrinando os alunos a serem comunistas. Meu primo a defendia. Meu tio a acusava. Só que a coisa estava fora de controle.


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    "Já que tu sabe tudo, me diz onde o comunismo deu certo?", meu tio questionou, impaciente.

    "Na Rússia!", respondeu meu primo, agilmente.

    "Mas como deu certo se a União Soviética não existe mais? Ou tua professora sonegou essa informação?"

    "Eu falei que deu certo, não que segue dando".

    "Então, onde o comunismo segue dando certo?"

    "Os índices nas áreas da Educação e Saúde de Cuba são ótimos".

    "Cuba?!".

    "Sim".

    "Mas Cuba é uma ditadura!".

    "Qual é o problema? Tu disse que a ditadura aqui no Brasil era boa!"

    Assim, eles iam. Até que um choro agudo interrompeu meu segundo delírio. Desliguei a torneira. Esperei a água descer por completo. Sequei as mãos no pano. Deixei a louça com espuma na pia e fui acudir meu guri. Seu bico havia caído no chão e ele acordou um tanto assustado no berço. Coloquei em sua boca outra vez. Embalei-o um pouco em meu colo. Logo depois, o menininho voltou a dormir. Olhei sua caretinha sonolenta. Um dia, ele terá seus próprios argumentos e vai me confrontar. Um dia, talvez, ele reflita sobre o jambolão. Vá saber? Voltei à realidade. Peguei a caneta, abri o caderno, aproveitei a luz da cozinha e resolvi escrever. Comecei com "o outono voltou mais uma vez", porque realmente é outono.


    lucas barrosoLucas Barroso

    Jornalista e escritor, autor de "Virose" (2013), "Um Silêncio Avassalador" (2016), "Um Gato Que Se Chamava Rex" (2018) e "O Tempo Já Não Importa" (2020).



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